Entrei para a faculdade de medicina no século passado. Que lástima. Já estou falando como se fosse Cora Coralina. O ano era 1983. Naquela época eu possuía uma vistosa cabeleira que foi compulsoriamente raspada no zero por parentes, por amigos e por vizinhos na rua da casa onde eu morava. Brincadeira consentida. Contentamento extremo por ter conquistado uma vaga numa universidade pública. Não me sentia nem um pouco incomodado por terem cortado as minhas madeixas. Hoje, calvo como uma bola de sinuca, sinto não poder dizer a mesma coisa.
Brincadeiras às favas, o meu primeiro contato com veteranos foi tosco e desagradável. Já tinha sido prevenido pelos colegas para não andar nas imediações dos prédios da agronomia e da veterinária, pois, os veteranos dali tinham a péssima fama de serem os mais cruéis e os mais violentos do Campus, em se tratando de aplicar trotes contra novatos. Mesmo assim, acabei cercado por três desconhecidos num dos ermos corredores do instituto de ciências biológicas.
Um deles, o idiota que vestia uma camiseta com a foto do presidente João Figueiredo acariciando o focinho de um cavalo, olhou para trás, olhou para os lados, retirou da cintura um trabuco e comentou que precisava da minha carteira emprestada para fazer umas comprinhas. Tive uma presença de espírito anárquica e arriscada. Eu disse que aquela droga de revólver era de brinquedo, que não ia entregar a carteira nem se o Papa João Paulo II me pedisse e que eles podiam voltar amanhã com uma arma de verdade pra gente conversar de novo. Os calhordas entreolharam-se desentendidos, sem saber ao certo em qual ânus introduzir o fura-bolo. Aproveitei o vacilo dos babacas e caí fora. Eram trouxas demais para me atirar pelas costas usando aquele legítimo Colt canela seca.
A não ser pela tentativa de assalto dos três patetas, tive uma convivência relativamente pacífica e humilhante com os veteranos. Precisava algum grau de inteligência emocional para lidar com toupeiras. Volta e meia, eles depuravam a sua inconveniência e a sua arrogância ordenando que eu cedesse o meu lugar no restaurante universitário, estapeando a minha cabeça e me chamando pela alcunha de “calouro burro”, que era uma espécie de mantra imbecilizante idealizado pelos panacas. Notícias de coações, roubos, assédios sexuais e pancadarias continuavam a pipocar entre os novatos.
Passarinho que come pedra sabe a cloaca que tem. Naquela época, já se ouvia dizer que os trotes contra os calouros eram ainda mais selvagens noutros estados da união, especialmente, São Paulo, onde havia o melhor e o pior do Brasil. Tinha um japonês na minha turma, gente da melhor qualidade, sujeito muito humilde e muito aplicado aos estudos, que me contou, aturdido, sobre o ataque contra um calouro de medicina numa faculdade pública em São Paulo. O garoto foi interceptado por veteranos que o contiveram e o despiram para que um imbecil o masturbasse no pátio. Uma palhaçada completa. Fiquei com aquela imagem abjeta ribombando na cabeça durante muito tempo. Por que ninguém fazia nada efetivo contra aberrações daquele tipo?
Não tenho saco para assistir aos vídeos que me enviam pelas redes sociais. Portanto, confesso que não vi as esdrúxulas imagens dos acadêmicos de medicina praticando “estripulias de cunho sexual” que foram amplamente veiculadas pelos canais da internet e pelos noticiários da TV. Li algumas matérias jornalísticas sobre o espetáculo burlesco proporcionado pelos universitários otários, inclusive, as notas de repúdio das faculdades e das entidades classistas dos esculápios, além das análises de especialistas em saúde mental e comportamento humano.
Creio que as pessoas nunca estiveram tão doidas quanto agora. Parece que o advento das redes sociais da internet catalisou uma espécie de surto coletivo no planeta, ao permitir o compartilhamento de informações verdadeiras e mentirosas numa proporção descomunal e numa velocidade jamais vista na história. O excesso de tempo desperdiçado na esfera virtual das redes deve estar derretendo a massa cinzenta dos indivíduos, tornando-as menos empáticos, mais cruéis, menos solidários e mais solitários; criaturas tão rasas e insossas quanto um Emoji.
Ao tomar conhecimento do despertáculo de babaquice proporcionado pelos estudantes, lembrei-me de certos enlatados americanos, filmes tolos como, “Porky’s”, “Picardias Estudantis”, dentre outras porcarias que a mocidade dos anos 1980 via nos cinemas. Aqueles alunos se pareciam à beça com as personagens de um besteirol americano. O inferno dos trotes contra os calouros sempre vigeu nas várias faculdades brasileiras. Só encontro uma explicação plausível para tamanho disparate ao longo do tempo: a impunidade.
Quem deveria tomar as providências disciplinares cabíveis — leia-se, as instituições de ensino superior que acolhem esses jovens — não o faz, ou por condescendência, ou por considerar que a violência e a humilhação de alunos façam parte da tradição universitária de se comportar como um imbecil ou, pior de tudo, por má fé e por questões meramente financeiras — no caso das instituições privadas que chegam a cobrar quinze mil reais de mensalidade dos pais de filhinhos abastados.
Tentarei não opinar como um hipócrita. Eu não expulsaria os babacas das faculdades de medicina ou das demais graduações. A idiotia permeia os vários cursos universitários. Reservaria a expulsão de um aluno antissocial como último recurso. Antes, denunciaria os fatos aberrantes às autoridades policiais, faria uma campanha de conscientização generalizada da comunidade estudantil, sobretudo, com o apoio indispensável dos professores; proibiria os trotes de qualquer natureza dentro das dependências da universidade; aplicaria sanções e medidas disciplinares de intensidade progressiva.
Concordo que se trata de uma luta inglória disciplinar “marmanjos mimados e sem berço” de determinados comportamentos deploráveis quando adentram numa faculdade. Certos ineptos, especialmente, os mais ricos, custam mais a amadurecer. Mesmo assim, é preciso comprometimento das instituições públicas e privadas com a qualidade do ensino superior, com a boa formação ético-acadêmica dos seus graduandos, sob risco dessas faculdades se passarem por coniventes com os degradantes atos de violência, de selvageria e de importunação sexual praticados por jovens energúmenos sob a sua tutela.
A solução contra os trotes passa pelos esforços de educação em todos os níveis, desde o ensino fundamental. Contudo, as universidades brasileiras têm o dever cívico de entregar à sociedade cidadãos menos estúpidos, menos boçais do que os patéticos protagonistas das picardias estudantis recentemente divulgadas. Em tempo: será que o Ministério da Educação vai enquadrar os gestores dessas faculdades?