Na Netflix, Wes Anderson transforma conto aterrorizante de Road Dahl em obra-prima do cinema Divulgação / Netflix

Na Netflix, Wes Anderson transforma conto aterrorizante de Road Dahl em obra-prima do cinema

Pode não parecer, mas ser criança é bem mais que partidas de futebol sem regra — e às vezes sem bola —, prantos sem motivo — ou sem um motivo que nós adultos consideremos justo — e perguntas cuja resposta é, quase sempre, apenas a extensão do mundo que descobrem não sem algum padecimento. A infância se revela potencialmente danosa, mas isso só quem pode dizer são os pequenos, que sentem dores invisíveis a marmanjos e mulheres demasiado pintadas, esperando suas oferendas para o futuro auspicioso em que já não creem.

Em “O Cisne” Wes Anderson continua em seu trabalho filigranado de resgatar a obra do galês Roald Dahl (1916-1990) e atesta o que muitos sabem desde tenra idade: a dita literatura infantojuvenil também exige refinamento, perspicácia, estilo e, o mais importante, jamais fazer pouco dos conflitos que afetam esse leitorado, e muito menos tratá-lo de forma condescendente. Na terceira adaptação dos contos de Dahl, Anderson explora as primeiras nuvens que se avolumam no horizonte da existência, ainda vasto demais para ser conhecido em sua inteireza.

Um garoto cativante, mas muito vulnerável, sofre a perseguição de vizinhos pouco mais velhos. Em seu roteiro, como já fizera em “A Incrível História de Henry Sugar” (2023) e “O Caçador de Ratos” (2023), o diretor enriquece a narrativa de Dahl, um tanto árida demais, com elementos cênicos que movem a ação para o terreno pantanoso do sonho, esforço que a fotografia de Roman Coppola, puxando para tons esmaecidos de amarelo e cinza, completa.

Rupert Friend leva o que é contado para o universo do drama, realçando a metalinguagem e novamente invocando o teatro com ambientes milimetricamente pensados, como as moitas de junco onde o menino se esconde de seus algozes. Peter Watson, o personagem de Asa Jennings, dá mesmo essa impressão de fuga permanente, decerto em busca de seu lugar no mundo. Tal como em outras circunstâncias, Rupert Friend submete-se à função de narrador onipresente e onisciente, trocando de lado com Jennings no clímax da história.

Enquanto isso, Anderson, bem a seu modo, abusa da câmera na mão e enquadramentos que captam a gravidade do fisionomia do ator, que, assim, dá pistas do destino que espera por Peter — sem que ninguém deixe de se chocar, entretanto. Do mesmo lugar em que surge nos outros curtas, uma poltrona clara à frente de uma parede em amarelo vivo, Ralph Fiennes encarna Dahl, impassível, deixando que seu enredo e as figuras que cria tomem seu caminho, limitando-se a, no máximo, inundar a cena com seu sarcasmo matador.

Alegoria das dificuldades com que todos nos deparamos antes de alçarmos voo, “O Cisne” talvez seja o trabalho mais sombrio de Roald Dahl, cujo mérito não é só seu. Uma notícia de jornal — a imprensa e suas moléstias sempre foram uma de suas obsessões — permaneceu em seus guardados por trinta anos, esperando a oportunidade certa para dar o bote e ganhar vida. Roald Dahl ainda é uma esfinge a ser decifrada, e, desse modo, devora-nos a todos.


Filme: O Cisne
Direção: Wes Anderson
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 10/10