O suicídio, de acordo com o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), é a única questão que importa na vida, dada sua complexidade dos pontos de vista sociológico, metafísico e religioso. Se nos mantivermos longe da perdição maior do homem e ficarmos aqui, neste plano, frente a frente com nossos tantos dilemas vitais, superando nossas fraquezas, convertendo-as em alguma coisa que pode não ser propriamente virtude, mas que liberta-nos do círculo vicioso da autopiedade e da maldição das emoções represadas, já teremos, como diz Durkheim, cumprido boa parte do papel de que a vida nos encarrega. Dar cabo da própria vida é a única coisa que não passa pela cabeça de Mía, a heroína de “Destinos à Deriva”, pela melhor de todas as razões. O catalão Albert Pintó elabora esse drama humanitário e a ele junta a pulsão de vida freudiana, encarnada da forma mais crua possível, remontando também a grandes sucessos do cinema, que, conforme se pode atestar, reaviva o mote com alguma periodicidade.
Ao longo de 109 minutos, encontram-se no roteiro referências a “Náufrago” (2000), dirigido por Robert Zemeckis; “127 Horas” (2010), levado à tela por Danny Boyle; “Gravidade” (2013), a odisseia sideral de Alfonso Cuarón; “Águas Rasas” (2016), de Jaume Collet-Serra; e “Solo” (2020), de Hugo Stuven, esse último decerto o mais semelhante ao trabalho de Pintó. Aqui, contudo, o diretor investe a narrativa de comentários sociológicos já na abertura, com tal assertividade que esse segmento até se descola do todo e parece outro filme, uma qualidade ambivalente que soa como defeito. Também no primeiro ato, detalha-se uma fase de privações severas numa Espanha sem localização precisa no tempo. Há sete meses, os espanhóis sofrem com o “Não Tem para Todo Mundo”, um plano que combate a falta de recursos vitais, leia-se comida e água potável — além de, claro, energia e petróleo. O regime começa a vingar, e por isso o país continuará de mãos atadas quanto a ajudar os mais vulneráveis. Nesse grupo se inclui Mía, a mocinha de Anna Castillo, que empenha-se em fugir com Nico, o namorado vivido por Tamar Novas. Pintó destila a aflição do casal, embrenhando-se pelas vielas de um atracadouro, noite alta, até que acham a embarcação que os levará rumo a um porto incerto, a uma vida incerta. Antes, Mía e Nico são obrigados a entregar as alianças, porque o atravessador decidiu reajustar a tabela sem prévio aviso.
Os dois são dispostos com outras dezenas de emigrantes em contêineres, separados. Uma vez que entram, estão cientes de que sua sorte será definida por uma série de infaustas variáveis, e é por aí que o diretor passa a navegar. Um evento inesperado os lança no mar, o filme dentro do filme. Castillo se apossa da ação inventando o novo universo em que potes de plástico compõem um sistema para manter o ambiente menos suscetível à oscilação da maré — e usando os que restam para abrigar as mensagens de socorro que escreve com caneta à prova d’água. Não é de todo inconveniente frisar os absurdos lógicos em “Destinos à Deriva”, mas perdoa-se qualquer desvario semântico graças ao desfecho que Pintó arranja para seu longa, metáfora das mais certeiras sobre recomeço em o Gênesis se sobrepõe ao Apocalipse.
Filme: Destinos à Deriva
Direção: Albert Pintó
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10