Absurdo e politizado, filme com Jamie Foxx na Netflix vai derreter seu cérebro Parrish Lewis / Netflix

Absurdo e politizado, filme com Jamie Foxx na Netflix vai derreter seu cérebro

Há uma porção de verdades inconvenientes em “Clonaram Tyrone!”, a sátira político-racial de Juel Taylor que vai muito além da denúncia. Taylor e o corroteirista Tony Rettenmaier parecem ter resolvido juntar numa mesma história o thriller sofisticado de Jordan Peele em “Não! Não Olhe!” (2022) e “Corra!” (2017); o terror em sua versão mais arguta de “Eles Vivem” (1988), dirigido por John Carpenter; e a comédia nonsense e reflexiva do Harold Ramis (1944-2014) de “Feitiço do Tempo” (1993), obtendo um resultado, por paradoxal que soe, uniforme, unívoco, coeso, mas longe de ser simplório ou reducionista. Aos poucos, o diretor chega não a uma, mas a uma pletora de conclusões sobre o que, afinal, é ser negro nos Estados Unidos hoje, e a uma solução fácil e rápida para problemas complexos e que se perpetuam em silêncio.

Michael Jackson (1958-2009) e Tupac Chakur (1971-1996), quem diria, tinham um ponto de interseção: eram frequentadores assíduos, embora sempre mantivessem o anonimato, das unidades do supermercado Piggly Wiggly de cidadezinhas do Centro-Sul americano. Pelo menos é o que conta Slick Charles, o tipo meio duvidoso vivido por Jamie Foxx, numa roda de outros vagabundos como ele. Enquanto o papo furado corre solto, um menino preto calçando Nike desliza pelas ruas da vizinhança atrás de Fontaine, o traficante meio bonachão e um tanto caricato de John Boyega, cuja fisionomia atoleimada faz com que aparente estar curtindo um barato desde que nasceu. Mas quem vê cara não vê o resto: por mais inofensivo que deixe-se perceber, Fontaine, neurastênico quanto a preservar seus domínios, não hesita em apelar a expedientes os mais traiçoeiros e até desumanos caso sinta que um outro malandro o ameaça. Junebug, aquele garoto, encarnado com brejeiro desassombro por Trayce Malachi, vai chamar o dono da boca para resolver um contratempo, e no GM beberrão de Fontaine, os dois conversam sobre Bob Esponja, Patrick e seus atritos profissionais no Siri Cascudo — na verdade, muito mais um solilóquio do bandidinho, pelo qual o gângster não deixa de demonstrar um maldisfarçado interesse. Minudências como essas, junto à fotografia em baixa resolução de Ken Seng e à trilha de Desmond Murray e Pierre Charles, levam o espectador a acreditar que se esteja no começo dos anos 2000, mas o diálogo entre Slick e Yo-Yo, a prostituta interpretada por Teyonah Parris, trata de embaralhar as cartas outra vez.

Na abertura do terceiro ato, a sequência numa tal Igreja do Espírito Santo no Grande Monte Sião começa a explicar minimamente uma parte de toda a loucura da ideia-chave, com Fontaine, Junebug e o casal improvável encarnado por Foxx e Parris descobrindo uma passagem secreta entre o templo e um laboratório onde negros são duplicados em escala industrial, como geladeiras ou máquinas de lavar, e para fins semelhantes. Na última cena, a voz de Erykah Badu só faz reforçar a confusão: ninguém sabe de onde toda aquela gente saiu; só o que se sabe é que… clonaram Tyrone mesmo!


Filme: Clonaram Tyrone!
Direção: Juel Taylor
Ano: 2023
Gêneros: Mistério/Fantasia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.