Obra-prima que levou o Oscar por atuação extraordinária de Angelina Jolie está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Obra-prima que levou o Oscar por atuação extraordinária de Angelina Jolie está na Netflix

O que terá a primazia, a loucura sobre a solidão, ou, ao contrário, a solidão, quando pungentemente intensa e à prova do tempo, acaba se metamorfoseando em algo ainda mais nefasto, como a doença mental? A verdade é que a saúde psíquica de uma pessoa está diretamente ligada à quantidade de vínculos que ela é capaz de estabelecer ao longo da vida, malgrado existam aqueles que vivem muito bem no seu próprio cosmo, desfrutando de uma condição de rara serenidade: têm a capacidade de interagir com quem quer que seja sem abdicar do gozo dos tantos momentos de retiro consigo mesmo, e tampouco ceder a qualquer espécie de psicopatologia. Na primavera de 1967, Susanna Kaysen, a personagem de Winona Ryder em “Garota, Interrompida”, vai parar no que até não muito tempo atrás se chamaria de hospício — palavra cancelada pelo politicamente correto, que acha que cancelar manifestações genuínas de certos fenômenos, inclusive linguísticos, resolve problemas os mais complexos —, mas um hospício de luxo, Claymoore. Susanna, no último ano do colégio, deveria estar se preparando para ir para a faculdade, mas resolve juntar o frasco de aspirina à garrafa de vodca num coquetel mortífero que quase liquida sua figura pálida, caquética, enfermiça. É diagnosticada com transtorno de personalidade limítrofe pela doutora Sonia Wick, uma psiquiatra que nunca vira antes, personagem de Vanessa Redgrave, mas é a enfermeira-chefe Valerie Owens, de Whoopi Goldberg, quem dá a sentença definitiva sobre o verdadeiro mal de Susanna, “uma garotinha preguiçosa e autoindulgente”, que precisa muito de alguma ocupação que a consuma o bastante para não pensar mais em bobagem.

Susanna é exatamente o tipo de pessoa que se adapta rápido demais a lugares como Claymoore, sem dúvida fundamentais para grande parte dos pacientes que podem arcar com seus custos, mas que também presta-se, a exemplo do que se dá com ela, a alternativa para parentes pouco ciosos limarem de uma vez por todas alguém que vira um peso na rotina (e na dignidade) do lar. Tomando por base o diário de Susanna Kaysen, cujos relatos verídicos pendem para a conclusão de que ela nunca teve um distúrbio psiquiátrico que a impossibilitasse de continuar privando do convívio social, o roteiro do diretor James Mangold, coescrito por Lisa Loomer e Anna Hamilton Phelan, destrincha boa parte das perdas de Susanna ao longo dos dois anos da permanência em Claymoore. Uma pessoa com problemas, como qualquer outra, é enterrada viva — e enterra-se a si própria também, que fique claro — num lugar perigoso para quem não necessita estar ali, muito menos por um período tão elástico, só porque foge à ideia da normalidade vulgar, só porque incomoda, só porque causa desconforto. Esse grandioso argumento burilado pelo olhar de Mangold, Loomer e Phelan, se junta à exposição de tipos como a furiosa Lisa, a personagem que deu a Angelina Jolie o único Oscar de sua prolífica carreira como intérprete e diretora, o de Melhor Atriz Coadjuvante, em 2000; Georgina, de Clea Duvall, que pensa ser Dorothy e viver no mundo encantado de Oz; Polly, vivida por Elisabeth Moss, vítima de episódios de automutilação; e Daisy, talvez a pior desse quarteto, uma interpretação dolorosamente realista de Brittany Murphy (1977-2009). O convívio com essas improváveis novas amigas é o que vai assegurar-lhe, de maneira muito parcimoniosa, mas também muito assertiva, que seu lugar, categoricamente, não é em Claymoore — e que precisa desvendar a exata razão de sua infelicidade e mudar em tudo a maneira como tem vivido. Continuar internada, quiçá para sempre, é mais fácil, mas não é justo. Nem consigo, nem com quem precisa mesmo de tal assistência.

Livremente inspirado em “Um Estranho no Ninho” (1975), o clássico de Miloš Forman (1932-2018), “Garota, Interrompida” chega a discorrer sobre temas colaterais, ainda mais nebulosos para época em que se desenrola a trama — feminismo, liberação sexual, drogas, sexo livre —, mas seu grande trunfo mesmo é fazer a questão manicomial, tabu até hoje no mundo todo passados 24 anos, um pouco mais digerível ao grande público. Ryder e Jolie são, claro, a cereja do bolo num filme quase perfeito, que carece de um tanto do que Freud denominou como pulsão de vida. É uma história veridicamente aflitiva, decerto, mas com margem para alguma especulação sobre um futuro mais auspicioso para aquelas garotas. Quem sabe com mais amor, o amor que não se sujeita a nenhum muro, concreto ou metafísico.


Filme: Garota, Interrompida
Direção: James Mangold
Ano: 1999
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.