Eu ia começar escrevendo que a minha memória anda uma merda, mas, fui alertado pelo meu editor — um cão-de-guardas a serviço da ética e dos bons costumes — a nunca mais redigir palavrões no escopo das minhas crônicas semanais. Minha memória anda um cocozinho. Outro dia mesmo, tive um entrevero com a diarista porque não conseguia encontrar os meus óculos, os quais estavam presos no topo da minha calva. Calma e pacienciosa como uma monja, Maria Helena sorriu e disse doutor você deveria procurar um colega seu ou comer mais pepino, pois, a sua memória está rateando. Infelizmente, a maioria das pessoas só vai ao médico quando está com um pé na cova e outro na casca de banana, completou.
Remediei o conselho da nobre ajudante e continuei a cometer gafes como, trocar os nomes das pessoas. Por exemplo, eu não me canso de chamar a Doutora Heyko de Doutora Yoko, pelo simples fato dela ser uma sansei registrada com um nome incomum o qual me remete imediatamente à pessoa de Yoko Ono, a viúva de John Lennon. É entrar no consultório da japinha e me lembrar da icônica capa do álbum “Double Fantasy”, na qual John e Heyko, ou melhor, John e Yoko aparecem se beijando.
Doutora Yoda, ou melhor, Doutora Yoko, quer dizer, Doutora Heyko examina o laudo da audiometria mantendo o calmo, particular e impassível semblante asiático. Por fim, abre um sorrisinho maroto e comenta que o ouvido esquerdo está perfeito, porém, contudo, todavia, eu já houvera perdido cerca de 20% da acuidade auditiva para os sons agudos no ouvido direito. Ela justifica que a perda parcial da audição consiste num fenômeno corriqueiro para a idade, mas — sempre uma conjunção adversativa para atazanar o sossego da gente — um percentual não desprezível dos pacientes acometidos pela Doença de Alzheimer apresenta a surdez e os zumbidos no ouvido como sintomas preliminares da moléstia. Eu respondo à Doutora Yoki que sou um homem pessimista demais para resistir à segunda hipótese por ela elencada. Ela sorri por reles misericórdia. Aos 58, não me considero um sujeito tão usado assim para acreditar que já pudesse estar batendo bielas dentro da piolhenta. Despedimo-nos com um afetuoso abraço e ela completa que eu não devo me preocupar com nada, a não ser, economizar audição, evitando os sons em altos decibéis.
42 graus. Parece que a cidade vai derreter. Enquanto caminho pela calçada com o calhamaço de exames enfiados no sovaco úmido, reflito sobre o histórico de surdez e de loucura na família. Meus avôs paternos morreram cedo demais, de tal sorte que não tive como averiguar sobre os seus antecedentes patológicos. Parti para os avós maternos. Vovô morreu de velhice aos 93, lúcido como um coice de burro, escutando até mesmo aquilo que não devia. Desde a morte acidental do tio Jairo — o filho caçula — vovó se tornara uma viciada em Rivotril. Quebrou o fêmur ao dançar um twist na cozinha e bateu as patacas aos 87. Padecia a velhinha de clamorosa deficiência auditiva. Jogava o pano de prato na gente, irritava-se com facilidade quando não escutava o que dizíamos. Apesar do perrengue auditivo, negava-se com contundência — e com panos de prato — em adquirir aparelhos auditivos que certamente melhorariam a qualidade de diálogo com as demais pessoas. Morreu surda, teimosa e saudosa de tio Jairo.
Papai era um pessimista nato. Esperava bater as botas desde os 27 anos de idade — a famosa maldição do Clube dos 27, embora, preferisse ouvir boleros — por causa da Doença de Chagas. Vivia dizendo que, nas suas contas, já deveria ter desencarnado os dentes e a alma, que estava apenas cumprindo hora-extra no planeta. Passada tanta insistência, esticou as canelas aos 83, devido uma insuspeita hérnia inguinal encarcerada. Por que ninguém tinha pensado nisso antes?
Mamãe continua firme e forte em sua saga de envelhecer com arte e com qualidade de vida. Aos 85, com exceção do tresloucado ritmo cardíaco que mais parece um fio desencapado, goza de relativa saúde físico-mental. Não admite, mas, anda escutando mal à beça. Desde a infância, por conta dos efeitos adversos de medicamentos prescritos para tratar as maleitas, perdeu totalmente a audição de um ouvido. Levei-a também até o consultório da Doutora Yoki, a qual diagnosticou, mais uma vez, o meu lapso: o seu nome, na verdade, não era Yoki — uma conhecida marca de milho de pipoca — nem Yoda — o mestre Yoda, de Guerra nas Entranhas — muito menos, Yoko Omo — a ensaboada viúva de John Lennon — mas, Heyko, simplesmente Doutora Heyko, a otorrinolaringologista que considerava imprescindível que mamãe utilizasse um aparelho no ouvido bom para preservar audição que ainda restava ou ficaria irremediavelmente ensurdecida.
Uma história puxa outra. Continuo a caminhar pelo bairro. Enquanto corneto suicidas, cambaleio de calor e piso em bosta de cachorro — que se dane o editor — perdido em meus pensamentos, volto demais na linha do tempo e me deparo com recordações da meninice. Se a droga da memória não me trai, o ano era 1976. Eu contava 11 anos. Uma excursão da escola levou os alunos do Colégio Marista até a Cidade de Goiás que, naquela época, todo mundo chamava de “Goiás Velho”. Além do turismo convencional na antiga capital do estado, o objetivo primordial era conhecer Cora Coralina, em carne e osso — mais osso do que carne — a maior poetisa goiana em todos os tempos.
Eu não apenas estive com Cora Coralina — ela contava 87 anos na corcunda — como tive o privilégio de me sentar ao seu lado e fazer o papel de “intérprete”, de catalizador dos questionamentos dos estudantes, gritando cada maldita pergunta a cinco centímetros do seu senil ouvido. Parecia mais surda do que a porta da Casa Velha da Ponte. Não me recordo quanto tempo durou a gritaria, ou melhor, a entrevista. Só sei que voltei afônico para Goiânia e não tive seque a chance de xavecar a menina mais bonita da sala que — maldição! — claramente me dava mole ao se sentar do meu lado dentro do ônibus com cheiro de carpete molhado. Pelo jeito, eu fizera retumbante sucesso entre os colegas ao esbravejar nos ouvidos moucos da célebre escritora.
Foi um equívoco. Shirley não aceitou ser a minha namorada quando voltei a verbalizar normalmente e lhe propus que pegássemos um cineminha. Paciência. Desde sempre eu flertara com o fracasso. Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro, reconheceu enfaticamente a qualidade da escrita de Cora Coralina, mas, não posso mentir que eu seja um fã da sua obra literária. Admiro-a — antes e sinceramente — como a mulher altiva que enfrentou perrengues terríveis numa época em que a sociedade conservadora era dominada pelo esterco de gado, pela violência e pelo machismo. Apesar de escrever desde a adolescência, a doceira Aninha, mais conhecida nos livros de história como Cora Coralina, publicou o seu primeiro livro apenas em 1965 — o ano em que nasci — aos 76 anos de idade, num completo desperdício de tempo e de glória.
Durante o encontro com os alunos, Cora ralhou comigo algumas vezes, porque eu teimava em apoiar o queixo sobre a palma da mão, e o cotovelo sobre a mesa, enquanto escutava as suas respostas. Ela explicou que não fazia bem à saúde mental manter o peso da cabeça apoiado sobre o antebraço, por questões do “fluxo energético vital”. Hoje, compreendo que ela me disse aquilo, de uma forma empolada, por mera delicadeza, pois, parece óbvio que os ouvintes, quando se acomodam de forma tão displicente, ou estão cansados, ou estão desinteressados no assunto.
Quem diria. Gritei no ouvido de Cora Coralina até perder a voz. Senti de perto o aroma gostoso, quase secular, da vovó misturada com alfenim. Já ouvi dizer que a poeta não era uma doçura em pessoa, vinte e quatro horas por dia. Tinha lá os seus resvalos na rabugice e no mau humor. Nada mal para uma escritora que, apesar de tamanhas adversidades, fez história na literatura brasileira numa época em que lugar de mulher era em casa, obedecendo ao marido, parindo filho, fazendo doce e batendo bassoura no terreiro.
Faz um calor implacável na cidade. Onde, afinal, Senhor, estacionei a porcaria do meu carro?