Um dos maiores clássicos cult dos últimos 25 anos está na Netflix Divulgação / Miramax

Um dos maiores clássicos cult dos últimos 25 anos está na Netflix

Não é tão simples para alguém de hábitos comedidos e pautados pela moral sincera entender as extravagâncias da chamada burguesia, ricos fúteis e grosseiros agarrados a costumes que quase sempre implicam na degradação de alguém — em especial de alguém que sabem indefeso até por uma questão de sobrevivência. No expediente artístico, contudo, esses mesmos grã-finos patéticos, ganham de quem os observa uma larga medida de tolerância, que não raro metamorfoseia-se em simpatia e, a depender da habilidade de seus intérpretes, termina por virar admiração. Foi assim com o vilão de “O Talentoso Ripley”, nascido da pena da romancista texana Patricia Highsmith (1921-1995), cujo estrondoso sucesso naquele pré-histórico 1955 a levou a dedicar-lhe uma série inteira, febre capitalizada por René Clément (1913-1996) em “O Sol por Testemunha” (1960), que coincide com o filme de Anthony Minghella (1954-2008) na sofisticação estético-narrativa, na ousadia dos enquadramentos e, por óbvio, no brilho das atuações. Cinco anos antes, Highsmith escrevera “Strangers on a Train” (1950), que Alfred Hitchcock (1899-1980) transformou em “Pacto Sinistro” (1951), trabalho que ele vez ou outra chamava de seu predileto. Em todas essas versões, cada qual reunindo suas idiossincrasias, mas todas beirando o genial, também se enxerga a influência do Molière (1622-1673) de “O Burguês Ridículo” (1670), comédia-balé em cinco atos em que o dramaturgo francês satiriza a existência farsesca de tipos como Thomas Ripley, o vigarista bonito, charmoso, diabolicamente astuto e perverso, demasiado perverso que nunca se dá mal.

No roteiro de Minghella, ao contrário do que se tem no filme de Clément, Ripley e Dickie Greenleaf, sua futura vítima, começam em seus respectivos nichos: aquele entra sem convite e com um paletó emprestado na festa que acontece no terraço de um edifício em Manhattan ao passo que o segundo está num giro pela Europa, por razões misteriosas que o diretor-roteirista vai esclarecer só na iminência da conclusão. Um casal de milionários se achega do penetra com a fim de saciar uma curiosidade que só poderia colar mesmo num enredo desse jaez e logo os três estão íntimos, a ponto de Ripley ouvir a proposta meio indecorosa de dirigir-se ao Velho Continente para buscar o filho dos ricaços agora que o perigo arrefeceu, tudo às custas dos dois, que ainda oferecem mil dólares pelo incômodo. Na vida real, a mera hipótese de Ripley aceitar o tal negócio já seria o bastante para que acendessem faróis de alerta nos olhos daqueles pais irresponsavelmente esmerados; todavia, a essa quadra dos acontecimentos, a fotografia de John Seale e o editor Walter Murch já trataram de segurar o público a unha, e um corte seco nos leva a uma praia na Itália, onde Dickie e a namorada, Marge Sherwood, usufruem de tudo que o dinheiro é capaz de comprar. O desempenho de Jude Law está umbilicalmente fundido ao de Gwyneth Paltrow, e isso, por paradoxal que soe, leva-nos a crer que o verdadeiro casal aqui é mesmo Law e Matt Damon. Mas uma cena na transição do segundo para o terceiro ato demole essa certeza: Ripley só se une a si próprio, numa empreitada assassina por achar espaço no mundo para tornar reais seus delírios de grandeza — e o que ele faz com Peter Smith-Kingsley, de Jack Davenport, e o que decerto fará com Meredith Logue, a nova conquista feminina, com Cate Blanchett na medida exata de classe e impostura, ratificam sua psicopatia uma vez mais. 

Visionária, Highsmith até parecia enxergar com sete décadas de antecedência a debacle de uma elite superficial, vazia, imoral, que paga pelas consciências que aquiescem em se vender ao preço que elas determinam. Minghella ressuscita essa aura irrequieta da escritora, desafiando a plateia a odiar Ripley de verdade, o que, admitamos, não é fácil. Todos temos um Ripley prontinho para sair do porão, e em muitas circunstâncias à procura de recompensas bem mais ordinárias.


Filme: O Talentoso Ripley
Direção: Anthony Minghella
Ano: 1998
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.