Vampiros, lobisomens, anjos, unicórnios e diabos jamais existiram, mas qualquer pessoa sabe as formas desses seres, graças às artes. Em sentido contrário, há ditadores e nazistas, por exemplo, dos quais se tem dificuldade de fixar suas imagens — cabendo mais à ficção a tarefa de capturar as coisas impensáveis que eles fizeram. Lançado na Netflix, o filme “O Conde” do chileno Pablo Larraín surpreende ao criar uma sátira política e irrealista sobre Augusto Pinochet, por meios das figuras do vampirismo.
Anos atrás, Larraín fez o interessantíssimo “No” (2012) para reconstituir realisticamente o processo do plebiscito de 1988 que tirou os militares do poder no Chile. Agora, o mesmo diretor recorreu à fantasia mais anárquica possível para tratar da pós-ditadura chilena. É uma filmagem para remexer o entulho histórico, social e econômico deixado pelos militares no país. O lançamento do filme coincidiu com o aniversário de 50 anos do golpe, que assassinou o então presidente Salvador Allende.
Como se trata de uma sátira, a primeira graça está na voz feminina que narra a história em inglês. Trata-se de um “mistério” central a ser desvendado na parte final. O filme faz uma mistura de ficção, documentário, jornalismo, teatro jurídico de julgamentos e, acima de tudo, narrativas de fantasia, monstros, terror. O personagem Augusto Pinochet Ugarte já foi dado como morto na história, mas aparece vivíssimo na pele de um vampiro francês de 250 anos de idade. Vive isolado com a esposa e um mordomo.
O problema é que seus cinco filhos querem sua morte definitiva para receber a herança, fruto da pilhagem feita pelo general quando presidente do Chile. O filme resgata uma série de histórias verídicas sobre as famosas contas bancárias mantidas pela família Pinochet, em paraísos fiscais, e alimentadas por simples corrupção. Num dos trechos mais engraçados, o protagonista discute com a interlocutora se é mais adequado ser chamado de assassino ou de ladrão. Ele prefere ser lembrado como assassino.
O conde-general-vampiro sobrevoa a capital Santiago, atrás de vítimas com sangue novo, e também visita o Palácio de La Moneda, sede do governo, onde sonha ter uma estátua sua na galeria de figuras célebres. Após anos de atrocidades, o cansaço bate forte, mas a esposa de Pinochet (Lucía) defende que eles se mudem para outro país e repitam a história que fizeram no Chile. É uma alegoria do morto-vivo dos vampiros que ilustra a literatura há séculos e ainda é uma imagem representativa para ver a realidade.
Chegam a enviar uma jovem freira para exorcizá-lo. É ela quem comanda as cenas mais ácidas, hilárias, como se fosse uma promotora de acusação de uma família que escapou de todas as prestações de contas à Justiça. Suas entrevistas com os cinco filhos se respaldam em todas as informações sobre a roubalheira executada pelos Pinochet. Evidentemente, o vampiro-general vai beber o sangue dela para revigorar sua vida; na verdade, uma nova etapa que vai se alimentar de vampirismo, assassinatos e, lógico, roubos.
A sequência mais anárquica de “O Conde” é a revelação de quem é a narradora do filme. Nesse ponto, Pablo Larraín parte para o ensaio político, estético, à moda dos melhores satiristas ingleses, como o escritor Jonathan Switf (autor das “Viagens de Gulliver” e de “Uma modesta proposta”). Na verdade, o grande vampiro é o neoliberalismo implantado ao mesmo tempo no Chile e na Inglaterra. Pela visão correta do diretor, o DNA é o mesmo. O sangue bebido é o de comunistas, sindicalistas, opositores.
O sobrevoo noturno de Pinochet pelos céus de Santiago mostra na tela o cenário das ruas da cidade. Ruas que foram tomadas nos últimos anos para o enterro definitivo de velho ditador. Mas, se Augusto Pinochet insiste em viver e alimentar o imaginário político, é melhor que ele seja mostrado como vampiro, ancestral, e traidor desde sempre. Sobretudo como um ladrão, escondido na capa de moralizador. Na cena final, a narradora-mãe do vampiro deixa na porta de uma escola o velho ditador que voltou a ser uma criança.