Um dos mais belos e perturbadores livros da história da literatura

Um dos mais belos e perturbadores livros da história da literatura

Li “Memórias do Subsolo”, de Fiódor Dostoiévski, e percebi que, aqui onde o frio é escasso, jamais compreenderemos a real essência da neve molhada. E é nessa simplicidade que reside a essência dostoievskiana do livro. Vou explicar.

Dostoiévski, há muito, não é apenas um escritor. Transformou-se em uma espécie de oráculo, profeta, arauto de futuros e “criador” de bases filosóficas e científicas consolidadas. Quase na mesma proporção da Bíblia ou de “O Poderoso Chefão”, as obras de Dostoiévski possuem respostas para tudo, segundo alguns de seus seguidores mais fervorosos. Para este que vos escreve, Dostoiévski era, primordialmente, um contador de histórias. E, frequentemente, por ser polifônico, essas histórias são narradas através de suas personagens. “Memórias do Subsolo” não é exceção. Aqui, o narrador é, nas palavras de Nabokov (que ironicamente sugere que o título deveria ser “Memórias de Debaixo do Chão” ou “Memórias de um Buraco de Rato”), um homem-rato, que se descreve como “um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável”. No entanto, não podemos atribuir seu comportamento repulsivo e egoísta simplesmente à bílis. Ou seja, o homem-rato não é um homem-biliar no sentido proposto por Sigismund Krzyzanowski. Fica a questão: essa personagem é complexa ou mal construída? Ela oscila entre extremos, demonstra mudanças bruscas de humor e apresenta traços que poderiam ser considerados autistas ou paranoicos. A resposta é que se trata de uma personagem extremamente peculiar e complexa.

Memórias do Subsolo
Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski (Editora 34,‎ 152 páginas)

A primeira parte do romance, intitulada “O Subsolo”, é um solilóquio denso, focando no autoentendimento e na teoria do narrador acerca de sua natureza introspectiva e solitária. Ele se condena por não ser nem bom, nem canalha, nem honrado, nem herói, nem inseto. Além disso, alega não ter qualquer maldade. Ele mergulha profundamente em sua amargura para compreender e justificar o homem que se tornou, uma vez que essa primeira parte aborda o seu presente. Conclui com teses pessoais, afirmando: “Agora, vivo meus dias em meu canto, consolando-me com a ideia — inútil e raivosa — de que um homem inteligente não pode se tornar alguém de destaque, e que apenas os tolos alcançam isso”. O narrador se vê como um homem culto e evoluído, porém, infeliz e frustrado. Nesta parte, ele também aborda temas intensos, típicos de Dostoiévski, como culpa, justiça e vingança.

A segunda parte, poeticamente intitulada “A Propósito da Neve Molhada”, é mais extensa e envolvente. É um relato de memórias e, conforme interpretação de Nabokov, o narrador as escreve para “descrever os prazeres da degradação”. Logo nas primeiras páginas, identificamos que o problema do narrador não é a arrogância, mas sim uma inquietação profunda e uma insatisfação consigo mesmo. Ele odeia seu próprio rosto, considera-o repugnante, e acredita que há nele uma expressão vil. Não há uma razão clara para seu estado de ânimo, mas ele fornece algumas pistas, destacando que riam de seu rosto e de sua aparência desajeitada, e o consideravam “órfão e oprimido”.

Dostoiévski é, sem dúvida, um contador de histórias. Ele narra com o propósito audacioso de transmitir uma mensagem à humanidade. O episódio do enterro da prostituta serve como pano de fundo para o narrador ministrar uma lição moral à jovem Liza: “não confie na mocidade”, alertando-a sobre os perigos de trabalhar em um bordel. A neve molhada simboliza o sofrimento e as dificuldades que as pessoas enfrentam, seja por escolha própria ou por indecisão. O autor destaca essa metáfora quando menciona o estado do solo no enterro: “No túmulo, haverá lama, sujeira, a neve molhada”. Em “Memórias do Subsolo”, a viscosidade da neve, misturada com água, que precisa ser escavada para aprofundar a cova destinada ao caixão, é o elemento mais marcante para dar vazão ao discurso íntimo, moralista e baseado nas convicções de Dostoiévski. É irônico que o narrador tenha repreendido uma prostituta, que ele considerava graciosa e vivaz, por sua escolha de vida, logo após ter sido humilhado por supostos amigos em um jantar para o qual não foi convidado. Contudo, ele tenta convencer o leitor de que agiu com propósito.

Para concluir, retomo uma frase de Nikolai Tchirkóv que sintetiza a obra: O homem do subsolo “fala sobre o complexo processo de conscientização de suas vivências”. O homem-rato, ou o homem-bílis, ou ainda o homem de debaixo da terra, é uma figura ainda não completamente compreendida. Reduzi-lo apenas a um ser frustrado é simplificar sua existência tormentosa e a razão de seu comportamento. Surpreendentemente, sua insatisfação não é com a vida em si, pois acredita que “Até na aflição a vida é boa”. Ele não está revoltado com o fato de sua aparência não corresponder à sua personalidade intelectual. Talvez seja apenas um embusteiro, um mentiroso compulsivo. O homem do subsolo pode ser visto como uma alegoria, uma maneira de Dostoiévski transmitir uma de suas lições morais. É um ponto de partida para sua profícua jornada literária.


Livro: Memórias do Subsolo
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Boris Schnaiderman
Páginas: 152 páginas
Editora: Editora 34
Nota: 10/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.