Grandes figuras históricas têm sido a inspiração para o cinema do chileno Pablo Larraín. Diretor de “Jackie”, biografia de Jacqueline Kennedy, e “Spencer”, sobre a princesa Diana, agora chegou a vez dele fazer um filme sobre Augusto Pinochet, ex-líder de seu país após o golpe militar em 1974. Intitulado “O Conde”, o filme que acaba de ser lançado é uma sátira da vida do ditador, falecido em 2006.
As histórias mais tradicionais da literatura e do cinema sobre vampiros sempre mostram essas figuras diabólicas sedentas por sangue de mulheres jovens, belas e puras. Larraín também constrói seu Pinochet com uma pegada dos condes Drácula e Graf Orlok: seu protagonista é um vampiro fascista de 250 anos, admirador de Napoleão Bonaparte e que, decidido a finalmente morrer, se apaixona por Carmencita (Paula Luchsinger), uma freira francesa cujo intuito é exorcizar o demônio de seu corpo.
O filme é narrado, tal como os clássicos “Vampyr” e “Nosferatu”, em preto e branco. Mas as cores não foram escolhidas por Larraín ao acaso. Inspirado também por “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick, o cineasta explica que o tom satírico e monocromático é importante para provocar o afastamento do público em relação ao protagonista, impedindo qualquer chance de se criar empatia entre quem assiste com o personagem. Isso, porque assim como no filme de Kubrick, os indivíduos retratados têm comportamentos inaceitáveis, mas precisam ser historicamente enfrentados.
Assim como o Brasil, o Chile vive um apagamento das atrocidades cometidas durante sua ditadura militar. Ao contrário da Argentina, que puniu veementemente seus comissários e tem sua ditadura retratada de forma negativa em diversas obras cinematográficas. Pinochet jamais foi transformado em personagem de ficção até “O Conde” de Larraín.
No longa-metragem, o ditador nasce como Claude Pinoche na França do século 18. Soldado de Luís 16, ele sobreviveu se disfarçando entre os revolucionários. Ele finge uma morte, com direito à funeral e enterro e, dois séculos mais tarde, reaparece como general na América do Sul. Mas Pinochet não perde sua índole traiçoeira e dá o golpe em Salvador Allende um dia depois de tê-lo jurado lealdade. Tanto na realidade como na ficção, ele é visto como um cavaleiro da democracia, cuja popularidade se mantém em alta entre os seus admiradores mesmo depois ter sido deposto. Muitos, até hoje, acreditam na farsa de que ele levou o Chile à prosperidade e livrou o país do comunismo.
No filme de Larraín ele finge uma segunda morte depois do fim da ditadura. Cansado e humilhado por ter sido acusado de ser um ladrão de dinheiro público, ele para de consumir sangue humano com o objetivo de morrer de uma vez por todas, mas antes pretende distribuir o que resta de sua fortuna roubada entre seus herdeiros. É quando ele recebe Carmencita, uma freira disfarçada de contadora, para apurar as finanças da família.
Com uma estética gótica que retrata o ditador e sua família em um glamour decadente, o filme se passa quase que completamente em uma área rural do Chile, onde a produção construiu uma propriedade de mais de 1.400 metros quadrados. A mansão em ruínas que tem uma arquitetura propositalmente atemporal indica que seus eventos podem ter sido em algum passado não muito distante. Mesmo assim, Larraín mistura alguns elementos atuais, como o fato de o vampiro fascista fazer drinks com corações de suas vítimas. Um verdadeiro esculacho.
O filme estreou no streaming apenas alguns dias antes do aniversário de 50 anos do golpe de Pinochet. Filho de pais direitistas ativos no Chile, Larraín se rebela contra suas raízes políticas e se opõe às ideologias nas quais cresceu sendo doutrinado. Uma comédia sombria e sagaz, “O Conde” é o som da voz de um artista que quer expor sua identidade chilena, falar sobre seu próprio território e os problemas de seu povo. Uma fuga do escapismo hollywoodiano vazio.
Filme: O Conde
Direção: Pablo Larraín
Ano: 2023
Gênero: Comédia/História/Fantasia
Nota: 9/10