Um dos maiores fenômenos latino-americanos foi a geração de escritores surgidos ao longo da década de 1960. A partir de uma sacada de mercado, espalharam-se pelo mundo os livros de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, entre outros. Ocorreu um verdadeiro “boom”, nome de batismo pelo qual ficou conhecida essa onda. A novidade era a cultura local, com traços indígenas, africanos, que filtrava a forma do grande romance europeu e do norte-americano.
De maneira inédita, o centro global da cultura (França, Inglaterra) reconheceu o valor e passou a ser influenciado por histórias que traziam um caráter mágico, absurdo, da realidade. Foi de onde se desdobrou a ideia de que esses latino-americanos escreviam um “realismo fantástico”. Tal projeto estava sintonizado com o nacional-desenvolvimentismo da região. A economia da América Latina havia dado saltos e enfim era possível imaginar uma aproximação de riqueza entre o Novo e o Velho Mundo.
Mas a utopia do “boom” e o sonho do desenvolvimento tiveram um tiro mortal numa data precisa. Na verdade, houve um golpe no sentido amplo da palavra. Há 50 anos, o 11 de setembro de 1973 significou a queda do presidente chileno Salvador Allende, assassinado pelos militares golpistas, e o enterro do projeto daqueles escritores que assombraram o mundo, conforme notou John Beverly. O que se mostrou mais claro, décadas depois, é que o golpe chileno foi o começo do fim simbólico de um continente.
O ditador Augusto Pinochet instalou um experimento que tinha o único objetivo de matar o projeto desenvolvimentista na América Latina, gestado nos anos 1930. No lugar, colocou um laboratório: as medidas radicais e neoliberais na economia e uma violência policial poucas vezes vista na História do mundo. Os resultados foram catastróficos, pois a economia foi varrida do mapa na década de 1980, chegando ao ponto de mais da metade da população ter caído para baixo da linha de pobreza.
“A queda de Salvador Allende emblematiza, alegoricamente, a morte do boom porque a vocação histórica do boom, isto é, a tensa reconciliação entre modernização e identidade, passou a ser irrealizável. Depois dos militares já não há modernização que não implique integração ao mercado global capitalista. Este foi, sem dúvida, o papel central dos regimes militares: purgar o corpo social de qualquer elemento que pudesse oferecer resistência a uma abertura generalizada ao capital multinacional”, diz Idelber Avelar, que desenvolveu a análise de Beverly no livro “Alegorias da Derrota”.
País destroçado
Sem o horizonte do “boom”, a literatura teve de buscar outras formas para expor o caos produzido por Pinochet. As narrativas vanguardistas de Diamela Eltit são os melhores exemplos para entender o que se passou no Chile. A autora mostrou toda a aberração chilena em livros inclassificáveis como “Lumpérica”, “Los Vigilantes” e “Mano de Obra”. No Brasil, foram editados recentemente “Jamais o Fogo Nunca” e “Forças Especiais”. Há um lado “B” do país que os apologistas do neoliberalismo esconderam.
Um dos primeiros retratos da ditadura chilena saiu no romance “Casa de Campo” (1978), de José Donoso. Trata-se de uma obra-prima da imaginação. Donoso criou uma história em que um grupo de crianças vai passar férias numa mansão, e elas se tornam prisioneiras dos adultos. Tudo aparece pelos olhos dos meninos e meninas. Apenas um dos adultos se solidariza com elas: o personagem que é a descrição de Allende. No final, descobre-se que a situação teria sido uma invenção da cabeça das crianças.
Pouco depois, em 1982, a escritora Isabel Allende lançou a obra mais popular a respeito da ditadura chilena: “A Casa dos Espíritos”. O “boom” já estava morto e sepultado, e ela tentou tirar a última gota de criação ao escrever a história de uma família ao longo de um século, com a vida repleta de eventos mágicos. Nada de novo aparecia no livro, porém um público mais amplo, o do best-seller, teve acesso a uma narrativa de que expunha o país destroçado em vários sentidos (social, humano, familiar).
O fim da ditadura Pinochet foi a saída imaginada para se evitar grandes traumas — se já não fosse dura demais a conjugação neoliberalismo-estado de exceção. Jogou-se toda sujeira para fora de casa. Surgiu assim a fórmula batizada de “Concertação”, cujo fim se deu em 2019 e 2020, com protestos de rua enormes e a chegada ao poder de jovens manifestantes (liderados pelo atual presidente Gabriel Boric). Os “concertadores” apostaram na reforma dos erros econômicos de Pinochet, mas não foi suficiente.
Os chilenos tentaram acomodar a questão política, sem uma punição dos militares que torturaram e desapareceram com corpos de opositores. A questão de memória, no entanto, se mostrou mais forte, ao ponto de haver atualmente a condenação dos oficiais que mataram o músico Victor Jara em 1973. O tema da anistia aos militares, junto da memória que não termina, foi o ponto de partida da peça teatral “A Morte e a Donzela” (1991), de Ariel Dorfman, um argentino de nascimento que viveu os anos Allende no Chile.
Tribunal da História
Dorfman criou uma trama bem simples. Um casal vive numa região isolada, fora da capital Santiago. Um certo dia bate à porta deles um senhor que teve um carro quebrado na rodovia próxima. Imediatamente a mulher vê no homem a imagem do militar responsável por suas sessões de tortura. É uma constatação verdadeira ou um delírio após tantos anos? Como havia uma anistia política no país e a impossibilidade de punição, ela mesma decide fazer o julgamento do visitante inesperado.
Também alta literatura é o romance “Noturno do Chile” (2000), de Roberto Bolaño. O escritor preferiu se tornar um exilado permanente após o 11 de setembro de 1973. Mas jamais deixou o Chile escapar de sua vida, fazendo um constante acerto de contas com o país. Neste livro, Bolaño inventou a figura do padre católico que dá aulas de marxismo para ninguém menos do que Pinochet. Trata-se de uma narrativa delirante, o que talvez seja uma das formas literárias para entender aquele pesadelo histórico.
Os tempos da ditadura continuam a render narrativas de ficção, como é o caso de “Space Invaders”, de Nona Fernández. O livro ganhou boa repercussão, foi editado no Brasil e teve uma leitora ilustre (a cantora e escritora Patti Smith). Segunda ela, “é uma pequena joia de livro, ambientada no Chile de Pinochet. Este tempo sombrio é narrado à luz da memória da infância, misterioso, mas preciso. Vale a pena mergulhar na linguagem pitoresca e na atmosfera com um quê de sonho de Fernández”.
Os livros citados são tentativas de narrar o impensável dos anos de Pinochet. O “boom” literário não cabia mais como forma de expor e assimilar o que se passou após 11 de setembro de 1973. Há dúvidas se a experiência ou os livros de História nos ensinam a não repetir os errados do passado. Como dizia Hegel, não se aprende nada com o passado — um dia, segundo relato de uma carta, o filósofo alemão viu Napoleão passar a cavalo na janela de sua casa e disse que havia visto ali o “espírito do mundo” em pessoa. Espíritos, fantasmas, o absurdo, tudo continua a rondar a América Latina.