Atuação extraordinária de Hugh Bonneville como vilão é o tempero de um dos melhores suspenses da Netflix Nick Wall / Netflix

Atuação extraordinária de Hugh Bonneville como vilão é o tempero de um dos melhores suspenses da Netflix

De quando em quando, surgem, à guisa do que teria ocorrido na Inglaterra no século 12, paladinos da justiça social que reparam ignominiosas desigualdades à custa de crimes, tal como fazia o lendário Robin Hood. Até hoje ninguém sabe se o arqueiro mais habilidoso da Idade Média existiu de fato; mesmo assim, seu exemplo, o de um homem decente, revoltado com a sina perversa da marginalidade — embora tenha almejado servir como guarda do bosque do rei Ricardo Coração de Leão (1157-1199) —, inspira contendores do Reino Unido (e de todo o planeta) ainda hoje. “Passei por Aqui”, do diretor britânico-iraniano Babak Anvari, avança uma casa quanto a discorrer sobre a vergonha da perpetuação da miséria e de cenários indignos para a vida centrando a história numa figura algo poética e dona de um modo de operação bastante peculiar. Heróis têm sobre o resto das criaturas esse salvo-conduto: passar por cima das convenções com o propósito de garantir que se observem determinados quesitos, os realmente essenciais para que todos tenhamos o mínimo para atravessar de um dia para o outro com alguma segurança, sem medo de acabarmos nos deparando com a humilhação de pedir, suplicar, implorar pelo pão que deveria ser de todos. A evidência incontornável é que quanto mais o homem difunde progresso por sobre a Terra, mais grassam as arbitrariedades, as injustiças, os ódios, tudo no plural e com fartura. Os candidatos a salvadores da pátria e do gênero humano desfilam com garbo excepcional por uma passarela de feiura, atirando aos rostos céticos seu olhar chispante, que ilumina, mas que também queima.

Em seu roteiro, coescrito de Namsi Khan, Anvari destrincha a vida de Toby Nealey, o vingador das ilusões perdidas encarnado com o brilho habitual por George MacKay. Toby não pretende trocar sprays por arco e flecha (provavelmente nunca sequer tenha visto nada assim), até porque com a tinta o vigor de sua mensagem permanece por muito mais tempo. Já na introdução, o espectador vai tomando pé do tipo complexo, entre sonhador e delinquente, vivido por MacKay. Toby acredita com sinceridade que ao invadir e vandalizar mansões de ricaços londrinos — sem surrupiar um alfinete — de algum modo os está levando a refletir sobre a tirania que querendo ou não ajudam a espalhar. A ação, surpreendentemente ágil, tem por saldo a frase “Passei por aqui”, grafitada na parede da sala de estar, para que tal imagem não saia da lembrança mesmo que várias demãos de novos revestimentos apaguem o recado do justiceiro, que a essa altura está acompanhando tudo pelo noticiário local, presa do orgulho silencioso que não pode dividir com ninguém.

Com cuidado, o diretor junta as sequências em que os temas sociais até então apenas sugeridos emergem com toda a força. Toby dispunha da ajuda de Jay em suas empreitadas, mas o personagem de Percelle Ascott marca um encontro num café da vizinhança a fim de dizer que, a partir daquele instante, terá de declinar dos convites para curar o mundo, ou seja lá o que o amigo pensa de suas estripulias, porque a namorada, Naz, de Varada Sethu, espera um filho. Jay é negro e Naz é uma imigrante indiana a caminho da formatura em direito numa instituição conceituada, em que só pode estudar graças à benemerência de filantropos como o juiz Hector Blake, excelente desempenho de Hugh Bonneville: ou seja, os dois, ao contrário de Toby, têm muito a perder.

É justamente com a entrada em cena de Blake que “Passei por Aqui” diz a que veio. A invasão do palacete do personagem de Bonneville termina mal para o anti-herói de MacKay. Anvari gira uma chave e o longa embarca num suspense hipnótico conforme o magistrado vai se revelando um psicopata do calibre de Hannibal Lecter, de “O Silêncio dos Inocentes” (1991), de Jonathan Demme (1944-2017): rico, sofisticado, acima de qualquer suspeita e altamente perigoso. Bonneville rouba a cena ao protagonizar embates com quase todo o elenco, até que sobrevenha a conclusão e seja, afinal, desmascarado. Tudo tão sutil que quase se pode ouvir seus pensamentos mais hediondos.


Filme: Passei por Aqui
Direção: Babak Anvari
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.