Não é nada fácil tentar corresponder ao que podem esperar de nós todos aqueles que não nos conhecem e arvoram-se em nossos advogados ou juízes, mas é escandalosamente melancólico fazer da vida uma mercadoria vulgar, a ser comprada ao preço mais em conta pelo primeiro que aparecer. Desajustes são comuns quando tudo o que se tem é pouco mais que a gana de seguir adiante, mas há quem enverede pelo lado mais obscuro da estrada com tanto gosto que passa a achar-se credor de tudo o que o mundo tenha a oferecer para que se escape ao tédio do existir. Pela leitura que Yûichi Fukuda faz do conto de Chapeuzinho Vermelho, depreende-se que a heroína de Charles Perrault (1628-1703) tinha muito a dizer, e “Em uma Terra Muito Distante… Havia um Crime” é a oportunidade que esperava há 326 anos. Velha conhecida da literatura desde 1697 e da cultura pop a partir de 1943, quando Tex Avery (1908-1980) configurou a narrativa sob a forma de um curta-metragem bastante autoral, a garota do capuchinho encarnado invade as fantasias de crianças e gente já dona do seu nariz sem cerimônia, e é aí que entra o trabalho de Fukuda — conceitualmente muito semelhante ao filme de Avery. Tanto no enredo desenvolvido pelo texano oitenta anos atrás como na delirante peça de realismo mágico recém-lançada pelo japonês, Chapeuzinho Vermelho é uma moça empoderada, para acenar ao cânone em vigor, disposta a ir às últimas consequências em nome dos lutas que considera meritosas. Mas, aqui, o politicamente correto fala ainda mais alto, e a protagonista depara-se com uma missão nobre e utópica, bem a propósito de seu espírito irrequieto e reformador.
Um livro se abre e quem porventura tivesse esquecido relembra o que todo mundo sabe: a menina atravessa um imenso bosque no caminho até a casa da avó, que sente pena dela e lhe presenteia com uma capa de veludo cor de sangue, para que se proteja do sol forte e das eventuais chuvas. Como sói acontecer, boas intenções às vezes transformam-se no empurrão que faltava para a queda fatal, e o lobo enxerga Chapeuzinho Vermelho justamente devido a cor berrante do novo adereço. No roteiro de Fukuda e Tetsuo Kamata, entretanto, não há lobo algum — e se houvesse, não duvide que a pequena faria miséria com ele. Chapeuzinho sai numa aventura intimista e um tanto solitária pela floresta verdejante, mas cheia de plantas espinhentas, rumo à cidadezinha de Spenhagen, até que esbarra com a bruxa Bárbara. O encontro coroa o fim do primeiro ato, com Miki Maya e Kanna Hashimoto em pleno domínio de suas personagens, e a elas se junta a Cinderela de Yûko Araki, responsável pela guinada no desfecho. A trama está toda ancorada na dicotomia de criaturas a uma primeira apreciação benignas que revelam-se monstruosas, simbolizada principalmente pelo romance confuso entre Cinderela e o príncipe, de Takanori Iwata, acusado de um crime que não cometeu. Há a consumação de um matrimônio, que, por óbvio, não tem nada a ver com Chapeuzinho e, menos evidente, nem com a personagem de Araki. A única pessoa lúcida o bastante para elucidar o crime a que o título alude é mesmo a protagonista, pela razão que o conto de Perrault já insinuara no século 17.
Filme: Em uma Terra Muito Distante… Havia um Crime
Direção: Yûichi Fukuda
Ano: 2023
Gêneros: Aventura/Comédia/Policial
Nota: 9/10