“A Rosa Púrpura do Cairo” marca uma das melhores fases da carreira de Woody Allen. Apesar de não ser tão lembrado pelo grande público, o longa é sem dúvida uma das maiores preciosidades da filmografia do diretor e possui grande importância para as discussões de teoria e linguagem cinematográfica.
A trama se passa durante a Grande Depressão dos anos 30, em Nova Jersey. Cecilia (Mia Farrow) trabalha como garçonete em um restaurante para pagar suas contas. Em casa, vive um relacionamento conturbado com seu marido bêbado e desempregado, Monk (Danny Aiello), que é agressivo, violento, machista e possessivo.
Cecilia encontra no cinema de sua cidade uma válvula de escape para seus problemas. Lá, ela consegue se transportar para outra realidade e viajar nas narrativas fantasiosas cinematográficas. O filme do momento é “A Rosa Púrpura do Cairo”, e Cecilia já assistiu mais de uma vez. Até que, em uma das sessões, um dos personagens do filme começa a conversar com ela, pois percebe que ela já assistiu ao filme várias vezes. Cecilia e os espectadores ficam assustados, já que nunca haviam visto esse fenômeno acontecer antes.
O personagem Tom Baxter (Jeff Daniels) decide então sair da tela e ir ao encontro de Cecilia. Tom é doce, gentil e carismático, e está completamente apaixonado por Cecilia. Ele quer ser livre, conhecer o mundo e passar o resto da vida ao lado de sua amada, e está decidido a nunca mais voltar para as telas.
Cecilia corresponde ao amor de Tom e encontra nele tudo aquilo que ela gostaria de ter em um relacionamento. Tom lhe dá carinho, atenção, amor e a valoriza verdadeiramente. A moça está entregue, mas sente que não pode se envolver completamente, já que Tom é apenas um personagem fictício.
Simultaneamente, o acidente extraordinário começa a causar alvoroço em Hollywood. Gil Shepherd (Jeff Daniels), que interpreta Tom Baxter no filme, está preocupado com a sua imagem, visto que seu personagem está à solta, e qualquer atitude polêmica dele pode acabar com sua reputação. Temendo o fiasco do filme, a produção envia Gil para Nova Jersey para tentar convencer Tom a voltar para o filme.
Ao chegar lá, ele conhece Cecilia e se apaixona por ela. E a personagem, que já estava envolvida com Tom, agora fica ainda mais confusa quando conhece o ator que tanto admira. Nele, ela encontra a personificação de um homem talentoso, cativante e cheio de brilho. E se apaixona perdidamente por ele.
A verdade é que Cecilia está nas nuvens. Dois homens fortes, corajosos e gentis estão apaixonados por ela, e para alguém que sempre foi diminuída e desprezada, Cecilia finalmente sente que tem importância na sua própria história. E aquela moça frágil, desastrada e assustada, agora é uma mulher forte, destemida e cheia de autoestima.
Tom decide levar Cecilia para dentro de “A Rosa Púrpura do Cairo”, e lá ela vive tudo que sempre sonhou: vai às melhores casas noturnas, dança, assiste a apresentações musicais, come do bom e do melhor e, ainda, vive um romance com o herói do filme.
Quando volta para a realidade, Cecilia percebe que precisa tomar uma decisão. Ela não pode mais sustentar um relacionamento com Baxter e Shepherd. Então, apesar da indecisão, ela resolve ficar com Gil Shepherd. Por mais que Tom seja um homem íntegro e amável, ela se encanta pelo glamour e o status de Shepherd, que é a grande estrela de Hollywood, e pode lhe oferecer um relacionamento real com tudo que sempre desejou.
No encerramento, Gil oferece a Cecilia a oportunidade de fugir com ele para Hollywood. Assim, os dois poderiam viver juntos a vida de fama e requinte. Cecilia, então, vai até sua casa, arruma suas malas e abandona seu marido. Porém, quando vai à procura de Shepherd, o que encontra é bem diferente do que imaginava. Ele não está esperando por ela e decidiu retornar para Los Angeles sozinho. E toda a sua suposta paixão agora se revela como uma tática de sedução planejada para fazê-la se esquecer de Tom.
Cecilia mais uma vez recorre àquilo que sempre lhe ajudou quando necessário: o cinema. O desfecho traz a dura realidade da vida e deixa uma sensação de decepção. Mas, ao mesmo tempo, consegue fazer renascer uma esperança no espectador, que é a mesma de Cecilia: o cinema é capaz de qualquer coisa. E essa é a verdadeira paixão de Cecilia. Lá é o lugar onde ela realmente mergulha num mundo de fantasias e cenários maravilhosos.
A comédia nostálgica escapa à fórmula usual de Woody Allen que retrata nova-iorquinos com problemas de relacionamento. Por mais que ainda siga a estrutura leve e cômica das narrativas do diretor, o filme fala, acima de tudo, sobre o amor. Daquele que talvez seja o maior de todos os amores de Allen: o amor pelo cinema.
Woody Allen constrói uma bela representação do cinema moderno. Já que nos primórdios, o cinema precisava se diferenciar de outras linguagens artísticas como o teatro e a fotografia, resultando numa completa modificação da Mise-en-scène. Mas uma diferença clara entre a fotografia e o cinema é que a fotografia é uma representação estática de um momento passado. Enquanto o cinema nos traz a sensação de que estamos vendo situações acontecendo à nossa frente, no momento presente.
O autor, portanto, brinca com a noção temporal trazida pelo cinema e dá à sua protagonista um papel ativo. Cecilia deixa de ser apenas uma espectadora para se tornar parte da trama cinematográfica. Ao fazê-lo, Allen explora a fina linha entre realidade e ficção, bem como as múltiplas possibilidades que o cinema oferece.
Através de Cecilia, Woody Allen questiona: até que ponto estamos dispostos a abandonar a realidade em prol de uma fantasia? E quando a fantasia se torna tão real a ponto de obscurecer nossa capacidade de distinguir entre o que é verdadeiro e o que é ilusão? A busca de Cecilia por amor e aceitação, tanto na tela quanto na realidade, reflete os desejos humanos universais de pertencer e de ser amado.
No entanto, a decepção final de Cecilia é um lembrete doloroso de que a realidade nem sempre se alinha com nossas expectativas ou desejos. Por mais que o cinema possa oferecer um refúgio, uma fuga da dureza da realidade, ele não pode mudar os fatos da vida. No final, Cecilia tem que enfrentar o mundo real, com todas as suas imperfeições e crueldades, mas o cinema permanece como seu refúgio, um lugar onde ela pode sempre encontrar consolo, esperança e maravilha.
A maneira como Woody Allen tece a narrativa de “A Rosa Púrpura do Cairo” é um testemunho de seu profundo respeito e admiração pelo cinema. Ele não apenas celebra o poder do cinema de transportar e transformar, mas também reconhece suas limitações. O filme não é apenas uma carta de amor ao cinema, mas também um comentário sobre a natureza efêmera da vida e a constante busca humana por significado e conexão.
Ao mesmo tempo, “A Rosa Púrpura do Cairo” também funciona como uma metáfora para a própria carreira de Allen. Assim como Cecilia, Allen passou grande parte de sua vida buscando refúgio nas telas, criando mundos onde os personagens podem escapar de suas realidades, enfrentar seus demônios e, eventualmente, encontrar algum tipo de redenção ou entendimento.
Em resumo, “A Rosa Púrpura do Cairo” é uma obra-prima que transcende gêneros e épocas. É tanto uma ode ao poder transformador do cinema quanto uma reflexão sobre a natureza humana e a busca interminável por amor e aceitação. E através de sua narrativa envolvente e personagens memoráveis, Woody Allen nos lembra que, mesmo na escuridão, sempre há um feixe de luz, uma esperança, que pode ser encontrada nas salas de cinema.
Filme: A Rosa Púrpura do Cairo
Direção: Woody Allen
Ano: 1985
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 10/10