Meninas e meninos, eu li “Número Zero”, último romance de Umberto Eco, e fiquei, mais uma vez, decepcionado. Eco, ao lado de Jorge Luis Borges, é uma de minhas maiores referências literárias. Considero “O Nome da Rosa”, de 1981, tecnicamente perfeito e “O Pêndulo de Foucault”, de 1988, o livro que mudou minha vida. Depois de duas obras-primas, infelizmente, seus outros romances variaram entre o medíocre, o autoplágio e o muito fraco.
Em 1994 publicou o interessante, mas levemente decepcionante, “A Ilha do Dia Anterior”. Um trabalho que se tivesse que ser pontuado ganharia nota oito. Tudo bem, nem um escritor italiano consegue produzir obras-primas como se produz pizzas. Em 2000 veio o fraco romance histórico “Baudolino”, um livro que deixou a sensação de ter sido escrito às pressas, sem grandes pretensões, feito para ser apenas uma aventura imaginativa. Há boas ideias, mas pouca coesão narrativa, variando entre alguns episódios interessantes e muitos ininteligíveis. Interpretei-o como o respiro do artista, a folga antes do canto do cisne. Nota sete, sendo generoso.
Quatro anos se passaram e saiu o ambicioso “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, obra lindamente ilustrada que tinha tudo para ser um novo triunfo, mas que resultou em outra decepção: o tema, a questão da memória individual em relação à memória coletiva, foi desperdiçado. Os personagens foram pouco desenvolvidos, o enredo ficou cheio de pontas soltas e tempos mortos. Assim como ocorreu nos dois romances anteriores, apresentou um final preguiçoso ao estilo José Saramago e Italo Calvino, do tipo “cansei de escrever, vou terminar o livro”. Comecei a ficar irritado. Mais um livro nota sete.
Quando, em 2010, foi lançado “O Cemitério de Praga” li-o cheio de desconfiança, embora, como sempre, esperançoso. Infelizmente, mais uma pizza queimada. O enredo é inverossímil e mal desenvolvido. Os personagens antipáticos e sem carisma. A narrativa preguiçosa e repleta de clichês. Umberto Eco tornou-se um imitador de si mesmo. Pior, imitava Dan Brown, autor de “O Código Da Vinci”, que por sua vez imitava e vulgarizava o Eco dos anos de ouro. Outro sete.
Com o lançamento de “Número Zero”, em 2015, Umberto Eco foi mais longe. Ele não apenas imitou e vulgarizou o autor criativo e estilisticamente elegante que um dia foi ao escrever “O Nome da Rosa” e “O Pêndulo de Foucault”, como se autoplagia toscamente. O enredo de seu último romance se passa em 1992, ano da Operação Mãos Limpas, que “limpou” a Itália de diversos esquemas criminosos que assolavam o país, mas que, como efeito colateral, gerou um vácuo de autoridade que ajudou a colocar no poder o milionário da mídia Silvio Berlusconi, uma mistura patusca de Roberto Marinho, Assis Châteaubriant e Silvio Santos à italiana. O mau jornalismo e suas consequências parece ser o tema. Poderia ser a má literatura.
Os problemas começam na primeira página, onde é apresentado um mistério que já não é dos mais empolgantes e que deveria iniciar o suspense da trama. Sua resolução, sugerida quase ao final, é feita da maneira despojada e desinteressante. Entre uma coisa e outra, o que encontramos é uma comédia de erros. O protagonista é o cinquentão Colonna, um perdedor excessivamente consciente (fala sobre isso o tempo todo), que trabalha como ghost-writer (“nègre”, como era chamado da Itália, antes da era do politicamente correto) e tradutor de alemão. Esse é o tema do primeiro autoplágio que consegui identificar, presente na página 15 da edição brasileira, um parágrafo que lembra muito um trecho de “O Pêndulo de Foucault”: “ou você traduz alemão ou se forma, as duas coisas juntas não dá para fazer”. Na página 64 é pior, encontramos um período que cópia quase palavra por palavra, em contexto diferente, um dos diálogos mais famosos de “O Nome da Rosa”, sobre herborismo. Na página 92 o autor recicla um artigo da década de 1990 sobre a então recente moda dos telefones celulares. E a coisa vai, em detalhes menores ou maiores.
Mas esses autoplágios são o menor dos problemas. Com um pouco de boa fé e complacência podemos considerá-los honestas autocitações, merecidas auto-homenagens, inocente masturbação intelectual, “easter eggs” ou mesmo que o idoso autor simplesmente esqueceu-se que usou tais ideias em outros lugares. Seriam apenas ecos de Eco em Eco. Justo.
O problema está na frouxidão no desenvolvimento do tema e do enredo. O problema está na galeria de personagens clonados, muito melhores em suas encarnações anteriores. O problema está nos diálogos engraçadinhos, requentados de outros livros. O problema está na abertura de assuntos, que ameaçam ser importantes, mas que são solenemente esquecidos. O problema está nas teorias conspiratórias pouco inspiradas. O problema está nos coadjuvantes sem carisma e irrelevantes. O problema está nas discussões exageradamente didáticas, que deveriam ser elucidativas e eruditas, mas que parecem resultados de pesquisas rápidas feitas no Google. O problema está na falta de um clímax, ou, por outra, um clímax anticlimático. O problema está no desfecho que deveria ser cínico, mas que se revela ingênuo, contando com um “moral da história”.
Qual a nota para “Número Zero”. Não seria zero. Fica no máximo com cinco, sendo generoso. O que leva a pensar: qual a nota final para obra de ficção de Umberto Eco, somando tudo?
Fiz uma conta rápida de padaria, ou de pizzaria: dez para “O Nome da Rosa”, dez para “O Pêndulo de Foucault”, oito para “A Ilha do Dia Anterior”, sete para “Baudolino”, sete para “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, sete para “O Cemitério de Praga” e cinco para “Número Zero”. Total 54, dividido por sete, resultado 7,71 de média. Arredondando sete e meio. Sem meias palavras, um autor sete e meio é um autor medíocre. Um autor, literalmente, mediano.
Podemos definir um medalhão como Umberto Eco como um escritor medíocre sem provocar choros e ranger de dentes, sem evocar as trombetas do apocalipse? Tenho a teoria de que Umberto Eco jamais foi um ficcionista de fato. Foi um acadêmico brilhante que dominava conceitualmente as mais diferentes técnicas narrativas, que resolveu se aventurar na escrita. Escreveu dois livros de gênio e deveria ter parado por aí. O resto fez por força de contrato, pelos milhões ganhos ou por pura e simples zoeira. De certa forma, o próprio Eco corrobora essa impressão numa passagem de seu livro “Confissões de um Jovem Romancista”.
Sendo justo, quem pode criticar um autor por ter “apenas” dois grandes livros no cartel? Lampedusa, outro italiano, só escreveu um. A inglesa Emily Brontë também. Juan Rulfo e nosso Raduan Nassar ficaram em três.
Definir Umberto Eco como medíocre é uma provocação, quase uma piada. Mas não é completamente descabido. É fato que Eco tentou acertar de novo. Não conseguiu. Em todo caso, não duvido que o sempre bem-humorado Umberto Eco compraria a piada. Afinal, como já escrevi em outro lugar, em consciente autoplágio, reafirmo que, definitivamente, Eco era um gênio fanfarrão.
Livro: Número Zero
Autor: Umberto Eco
Tradução: Ivone Benedetti
Páginas: 207
Editora: Record
Nota: 5/10