Acontece assim. De quando em vez, aparece aqui embaixo um artista à frente e acima de seu tempo. Alguém agraciado por uma luz e um propósito tão bonitos que sua arte desaba sobre nós feito chuva de vento, ensopando de eternidade a nossa existência tão breve e desidratada de belezas que duram.
Pois agorinha mesmo me acertou em cheio o trabalho da cantora, compositora e educadora Niwa. Seu primeiro álbum, “Araponga”, é uma espécie de terremoto, uma aparição, um disco voador pousando em praça pública ao meio-dia.
Em dez canções douradas tão difíceis de classificar quanto impossíveis de ignorar, Niwa me arrastou numa enxurrada de sentimentos confusos e indefensáveis. Senti vontade de chorar e de pedir perdão, de brigar e de agradecer. Senti raiva e senti amor, saudade e esperança, alegria e pavor. Senti o arrepio da beleza e o ímpeto inexplicável de plantar a árvore que um dia será minha casa.
Fui pesquisar sobre Niwa, saber mais sobre ela, compreender o que acontecia, e descobri que seu disco foi uma espécie de “jornada de reconexão” com suas raízes. Niwa descende de índios por parte do pai e de japoneses por parte da mãe. E sendo mestiça em uma sociedade branca e patriarcal, seu sentimento de inadequação a fez empreender mais que uma pesquisa, mas um diálogo com seus ancestrais. Ao que encontrou, incluiu referências atuais de música popular e eletrônica, mergulhou em experimentos, misturou belezas, amores e dores, cultivou em seu ventre passado, presente e futuro e deu à luz num relâmpago um trabalho único, incomparável, poderoso e bonito.
Niwa nos arranca do chão com garras gentis de ave mitológica e nos leva a uma viagem por melodias lindas e fortes, arraigadas em sua identidade multicultural que sobrevoa nosso mundo rasteiro. Por suas veias correm juntos Björk e Tetê Espíndola, Depeche Mode e Mercedes Sosa, as sirenes marítimas e o canto da araponga. Em sua arte se encruzilham a Amazônia e o Japão, Nova Iorque e Nova Délhi, São Paulo e Belém do Pará. Em seu peito batem antigos tambores e novas tecnologias sintetizando o que somos, o que fomos e o que inda haveremos de ser.
Verdade é que, tentando descobrir a si mesma, Niwa redescobriu o Brasil, esse lugar que os portugueses “descobriram” há mais de cinco séculos, mas que até hoje não foi descoberto por tantos de nós, brasileiros.
Seu disco nos presenteia e abençoa com uma perspectiva única sobre música, cultura, identidade racial, sobre o que nos separa e o que nos reúne. Sobre as delícias e as dores da incrível e poderosa alegria da vida.
De quando em vez, aparece aqui embaixo um artista à frente e acima de seu tempo. Entre eles respira e canta Claudia Nishiwaki Dantas, a Niwa, uma força da natureza trovejando belezas sobre o mundo que há de celebrá-la hoje e cada vez mais.