Há quem precise de uma vida para conseguir realizar um sonho, que pode muito bem ir se transformando até que, num dia aparentemente banal, não reste quase nada do que se tinha no começo, dinâmica que define o próprio estar no mundo. A vida é movimento, já consagrou o berro cavo das ruas, e nesse sobe e desce, nesse estica e puxa, perdem-se as ilusões, mágoas tomam relacionamentos que pareciam imunes a sinal de fraqueza e mesmo a sobrevivência dá mostras de um contratempo sem limite, exigindo-nos uma tranquilidade com que não nos contempla a hora crítica em que estamos.
O velho desalentado e escandalosamente lúcido que protagoniza “Cavalos Selvagens” não espera mais pela bondade ou sequer pelo bom senso de ninguém, e, por essa razão, avança sobre a primeira oportunidade que se lhe insinua para corrigir um erro que à apreciação da lei decerto parece tolo, mas que separa um fiapo de dignidade da miséria mais ultrajante.
Em sua crônica de uma infelicidade bastante específica e abrangente que cerca o destino do gênero humano, o argentino Marcelo Piñeyro oferece ao público um relato feroz, ainda que marcadamente sofisticado, da luta por fazer um direito sair do papel, o que degringola nas situações nonsense que se estendem até o desfecho ambíguo, de avassaladora força poética.
Não estar morto não quer dizer estar vivo, é a ideia central do roteiro do diretor e Aída Bortnik, defendida com toda a honradez por José, o sexagenário que continua esperando pelo pagamento de uma restituição tributária de 15.344 dólares, uma ninharia para o banco que lhe deve, mas a diferença entre fome e barriga cheia, doença e remédio, morte e vida. A contenda já se espraia por duas décadas, e agora que sente que o fim de tudo pode colhê-lo numa curva mais fechada do caminho, se dispõe a ir ao banco, esperar por atendimento e quando for conduzido até a sala do vice-presidente a fim de receba o milésimo não, sacar um revolverzinho que mais parece de criança, apoiá-lo contra o queixo e dar cabo da própria vida ali mesmo.
Há uma equipe de reportagem na rua, o que justifica o inestimável fuzuê em que tudo degenera, com Piñeyro dominando toda a ação por meio do posicionamento diligente das câmeras, a ponto de se ter uma ligeira vertigem a respeito da história que está tomando corpo, mérito também da inventiva e meticulosa edição de Juan Carlos Macías. Dentro do banco, a essa altura o velho já deu o show que prometia, mas não contava sair como um assaltante nada expedito, que leva Pedro, o funcionário com quem falara primeiro, de refém.
Trata-se de um grande mal-entendido, claro, explicado, pouco depois, o que não tira nem uma casquinha da graça do filme, conduzido dessa maneira até o encerramento, manifesto de liberdade, morte, vida e ressurreição, com Héctor Alterio e Leonardo Sbaraglia num dos mais sublimes lances de suas carreiras.
Filme: Cavalos Selvagens
Direção: Marcelo Piñeyro
Ano: 1995
Gêneros: Drama/Ação/Aventura
Nota: 9/10