Novo thriller provocativo na Netflix oferece 114 minutos de pura tensão Divulgação / Netflix

Novo thriller provocativo na Netflix oferece 114 minutos de pura tensão

Direção de estreia de Fares Fares, “Um Dia e Meio” começa bem. Seus primeiros 15 minutos são cheios de tensão e vai nos conduzindo por memórias angustiantes e sombrias que nos remetem ao caso Eloá ou ao sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, ambos com fins trágicos. Artan, interpretado por Alexej Manvelov, invade a clínica médica em que sua esposa, Louise (Alma Pöysti), trabalha. Com uma arma apontada para a cabeça dela, ele a faz de refém, além de outros funcionários e pacientes.

Fares Fares não fica apenas atrás das câmeras orientando sua equipe de atores e produção, ele também encarna Lukas, policial incumbido de negociar os termos com Artan. Então, o sequestrador exige um carro descaracterizado e com vidros escuros para sair, com a mulher sob a mira da arma e Lukas no volante, em busca de sua filha, proibido de ver desde sua separação.

Com uma escolta os seguindo, o trio faz uma jornada pelo interior da Suécia, rumo à casa dos pais da refém, onde ela escondeu a criança do genitor. Ao longo do trajeto, Artan e Louise têm discussões pessoais, que revelam ao público os problemas de seu casamento: a depressão pós-parto de Louise e a traição de Artan, que culminaram no fim de sua relação. Lukas também é inquirido sobre sua vida pessoal pelo sequestrador. Ele conta que é divorciado, mas que convive pacificamente com a ex-mulher por causa de seus dois filhos.

Ao longo da troca de desabafos, as ameaças de Artan vão se tornando menos agressivas. Lukas parece se conectar, e até se identificar, com o sequestrador. O medo e a raiva de Louise pelo ex-marido vão se dissipando como névoa. Não fica nítido se Fares Fares está tentando encenar um caso de Síndrome de Estocolmo ou se ele está realmente relativizando a violência praticada por Artan, que sequer chega a ser um antagonista.

A chegada na casa dos pais de Louise revela questões ainda mais enraizadas. O trio se depara com uma dupla de idosos ainda mais perturbados que o ex-casal que protagoniza a trama. A mãe de Louise, claramente uma narcisista,  a culpa por toda a situação. A filha do casal, fermento do crime, Cassandra (Amicia Heijbel), que não deve ter mais que três anos, é mais uma vítima daquela família totalmente desequilibrada e agora está sob a mira da arma de seu avô, que na sedenta busca por se livrar de Artan, não se importa com os riscos nos quais submete a criança.

Fares Fares perde o controle de sua narrativa. Tenta retratar os desajustes familiares, mas reconsidera como “não tão grave” a violência doméstica e os assédios morais e psicológicos de Artan com Louise. Em vários momentosa até parece o pintar como um pai exemplar, que cuidou sozinho de sua filha enquanto a mãe estava internada em uma clínica para cuidados mentais. Todos os crimes que comete durante o enredo são justificados pelo “amor à família”. Artan é redimido pelos seus pecados, mas este nunca reconhece a depressão pós-parto de sua ex-mulher como doença e seu erro em traí-la, fazendo se sentir sempre culpada pelo passado.

Fares Fares perde a oportunidade de fazer um thriller arrepiante e com argumentos sociais relevantes para cair no comodismo da narrativa antiquada e machista. “Um Dia e Meio” poderia ser uma reflexão sobre a complexidade das relações familiares, mas acaba servindo como justificativa para que homens continuem a subjugar, espancar e assassinar suas esposas e filhos. Até a metade do filme, é aterrorizante e magnético, perdendo a força de sua narrativa a partir da segunda metade.


Filme: Um Dia e Meio
Direção: Fares Fares
Ano: 2023
Gênero: Ação/Drama/Suspense
Nota: 7/10

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.