Fazia um frio de lascar o cano em Santiago. Preferia mais o sol e o calor, sob as bênçãos da chuva. Viajar era bom, mas, que saudades eu sentia do Brasil. Conheci a instigante frase-título desta crônica sob a forma de uma sentença interrogativa, inscrita numa placa, dentre tantas outras dependurada dentro do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, fundado em 2011 pela Presidente Michelle Bachelet.
A capital chilena parecia plana, limpa e bonita. Alegra e deprimente também, em certa medida. O clima de inverno deixava-me mais macambúzio do que o habitual. Nunca me acostumei com aviões. Passadas quatro horas de confinamento e de turbulências “a dez mil pés” — como frisava o sádico comandante da aeronave pelo sistema de som — finalmente, sobrevoamos a Cordilheira dos Andes e iniciamos o procedimento de descida rumo à majestosa metrópole edificada no meio do imenso vale.
Era bom pisar novamente em terra firme. Após a inadiável assepsia das nádegas medrosas, foi a vez de realizar o check-in no hotel e de adentrar numa van com outros quinze valorosos turistas, meter correntes nos pneus carecas e torcer para que o trambolho lotado de gente não deslizasse despenhadeiro abaixo, indo parar dentro de um regato gélido, inóspito e de difícil acesso, matando-nos a todos. Eu sei que isso soa melodramático ao extremo, mas, eu sou assim mesmo, neurótico e extremamente assustado.
Depois de sessenta e muitas curvas em ângulos agudos nauseabundos, atingimos o esplendoroso cume congelado. Via a neve pela primeira vez na vida. Idiotamente, esbanjei neurastenia ao fazer um patético paralelo entre o Vale Nevado e o freezer lá de casa, com todo aquele excesso de gelo pregado nas prateleiras, o que atravancava o fechamento perfeito da porta, propiciando a entrada de corrente de ar pelas frestas das borrachas ressequidas, criando, enfim, um círculo vicioso, ridículo e enfadonho que eu teimava em procrastinar uma solução. Além de procrastinador, eu era mais prolixo do que pinto no lixo.
Ao vislumbrar a vastidão gelada, foi inevitável pensar nalgumas pessoas lá no Brasil. Já houvera pressentido semelhante frieza nos seus olhos, nos seus gestos, pois, agora, passada a acirrada eleição presidencial, continuavam estranhos, diferentes, ao se metamorfosear em seres rancorosos, agressivos e reacionários. A montanha coberta de gelo por todos os lados foi uma visão absolutamente impactante, assim como a percepção que tive no tocante à resiliência do povo chileno, durante a visita que fiz ao museu.
Parti, portanto, para o manjado city tour. Eu vi a neve, mas, acima de tudo, eu vi o escopo da maldade sendo derretido pelo calor que imanava dos corpos e dos rostos da gente que fora fotografada protestando contra a ditadura nas ruas, nas praças e nas universidades, durante a mortífera gestão militar que perdurou dos anos de 1973 até 1990. Descobri que o projeto do moderno edifício onde fora instalado o Museu da Memória e dos Direitos Humanos tinha sido concebido por arquitetos brasileiros, selecionados por meio de um concurso internacional. Pintou aquele orgulho de ser brasileiro, apesar das altas incidências de dengue e de sífilis que não paravam de crescer.
Isso é que era visão de cidadania: a entrada ao museu era gratuita, mas, o passeio custava caro à saúde mental dos visitantes. Durante o silencioso trajeto pelos corredores, percorri com a minha gata um amargo caminho montado em fotos, em vídeos televisivos, em áudios radiofônicos, em pertences pessoais resgatados dos cidadãos aprisionados e judiados pelo autoritário Estado chileno.
Fiquei aturdido ao ouvir o último discurso de Salvador Allende pelo rádio, antes do golpe militar que prendeu, sequestrou e assassinou milhares de pessoas no Chile. Chocou-me, particularmente, a leitura de uma longa lista, em letras garrafais, com os mais variados métodos de torturas físicas e psicológicas utilizadas pelos covardes milicos, que singravam desde o estupro das prisioneiras e o espancamento coletivo dos detidos, até o afogamento, a roleta russa, a privação forçada do sono e a visualização obrigatória de outros presos sendo torturados.
Nenhum visitante — a maioria deles, estudantes, é preciso que isso seja enaltecido — não passava incólume pela ala onde estavam expostas cartas com os desenhos e as garatujas de crianças saudosistas que eram endereçadas aos parentes sequestrados pelo Estado e que jamais seriam lidas pelos mesmos. Parecia que um estado inevitável de letargia ia me consumindo como se eu fora uma vela a queimar silente. Aliás, havia um sem-número de simulacros de velas iluminando o gigantesco mural cravejado de fotos dos rostos de mortos e de desaparecidos durante o virulento regime de Pinochet, aquele mesmo que fora elogiado pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, mais conhecido como “Mito”, pelos seus ignóbeis e inumanos asseclas.
Seria desonesto negar que eu ainda guardava um bocado de estupefação e de mágoa por muitas pessoas do meu convívio, algumas delas, familiares e amigos de longa data que apoiavam, por meio do voto e da retórica furiosa, absolutamente insana, a sinistra onda ultrarradical de extrema-direita que defendia, dentre tantas barbaridades, o cerceamento das liberdades, o fechamento da corte máxima do judiciário brasileiro, a extinção do Congresso Nacional e o famigerado retorno dos militares brasileiros ao poder. Quem não conhecia a história passava vergonha ao tentar repeti-la, defendendo o indefensável e, de quebra, colocando Deus no meio daquela baixeza. Se eu fosse Deus, se eu existisse, jogava raio naquelas pessoas, ao estilo do Velho Testamento.
A visita ao Museo de la Memoria y los Derechos Humanos — o ponto turístico mais relevante da agradabilíssima cidade de Santiago do Chile — reforçou a convicção pessoal de que a democracia e a liberdade são bens intocáveis que jamais deveriam ser aviltados e, sequer, ameaçados de golpe, sob pena de fazer acreditar que determinados indivíduos, por mais gentis, ordeiros, familiares, religiosos e patrióticos que possam parecer, demonstram se constituir naquele tipo de gente cujos corações — por ignorância, por má fé ou por falta de memória — não passam de bolotas de neve hibernando nos cocurutos friorentos das cordilheiras. Lá onde o filho chora e a mãe não escuta, como sói acontece em toda e qualquer ditadura que assola o planeta.