Li “Formas Feitas no Escuro”, de Leda Cartum. Que surpresa boa! Digo surpresa pois encontrei o livro em um sebo e não conhecia a autora. Uma belíssima edição, com uma capa atraente e cativante. O livro é dividido em três partes. Começa meio tímido, arrisca pouco. O termo “um homem…” dá o tom, o início. Daí vem um dilema, uma máxima, uma interpretação. São microcontos de literatura fantástica. Pílulas de um mundo à margem, com gente neles vivendo de migalhas inusitadas de vida e sopros repentinos de entendimento. Talvez seja o mesmo homem o tempo todo. Não se sabe. “Um homem preparava arsenais invisíveis; afiava facas por baixo do pano; lustrava armaduras minúsculas; tensionava os músculos, pronto para uma guerra que iria travar sozinho a cada dia atrás da porta. Mobilizava esforços, forçava torrentes, torcia enxurradas …”
O tigre é um arquétipo borgeano! Vastamente explorado e citado pelo escritor em seus contos e uma das figuras mais emblematicamente identificadas em sua obra. Outros são o espelho, o labirinto, a biblioteca, o outro. Leda também tem os seus e sabe usá-los. Para ela, os elementos recorrentes são: montanhas, criaturas, monstros, pedras, cavernas. E ela os conecta com suas personagens, de forma delicada e equilibrada. O que é um grande trunfo. Muito pouco está deslocado ou é gratuito. O livro possui um lirismo coerente e beleza na confecção das frases e dos termos: “visitava imagens, refazia instantes…”. Possui metáforas na medida, subversão dosada, preparo e maturidade. “Um homem segurava o nada nos ombros.”
A capacidade de abstração criativa de Leda é formidável. O texto é imaginativo, denso e possui amplo significado. As analogias surgem com eventos ocasionais, simples, da vida que, no ambiente leve e fantástico de Leda, ganham profundidade e novo sentido. “Águas-vivas cintilantes e percevejos azuis, bichos líquidos, plantas vagas, raízes muito profundas dentro da terra.”
Na segunda parte, as formas, como para Platão, são as sombras da realidade interpretada. “Você chega a distinguir os contornos, mas logo confunde de novo, e os traços que tinham ficado claros desaparecem atrás da névoa.”. “Você …” é a palavra da vez!
Existe algumas listas. E por listas quero dizer a distribuição seguida de palavras dispostas para causar efeito pelo simples fato de conectarem entre si e falarem sobre o texto, redizê-lo ou enaltecê-lo. “Penas, plumas, pelos, pele lisa, escamas, cracas, cascos, corcovas.” Há um crescente sentido. Há uma evolução da ideia. Ou “trombas, chifres, marfim, estalactites, estalagmites, …”.
Em “Formas Feitas no Escuro”, há um sentido místico, uma impressão oculta, um mistério sútil. “Mas quando não restava dúvida da direção dos seus passos, você orquestrou a desordem das gavetas e das prateleiras, fez com que as ondas transbordassem dos armários e um vendaval levasse os objetos consigo.”
Na terceira parte, há uma regra íntima. E isso é observado pelo desejo da presença de uma palavra-chave: “eu”. “Dormem também plantas, brotam trepadeiras dentro dos meus órgãos.” “Eu converso com o cansaço.” Esse é o capítulo das confissões. “Modelo com as mãos em concha na areia tudo que já vi.” Leda encerra seu livro modelando ideias, e aperfeiçoando a estética de uma literatura do ele-você-eu: crítica, sensível e intimista.
Livro: Formas Feitas no Escuro
Autor: Leda Cartum
Páginas: 88 páginas
Editora: Fósforo
Nota: 8,5/10