A moça do meu ‘bom dia’ surge. Sozinha. À une passante. Num ímpeto de ansiedade quase me levanto para conversar com ela. Recalco inteiramente meus desejos. Se eu me relacionasse com ela todo o meu argumento literário se dissiparia. Acalmo meu coração e minha mente. Ela veste uma saia jeans e uma camisa branca. Biquíni preto por baixo da roupa. Cabelos presos. Dormiu bem. Muito bem. Parece relaxada e tranquila. Gozou? Ela não me olha. Não me vê. Está com uma máquina fotográfica ao seu lado. É uma máquina profissional. Possui um zoom gigante. Fotógrafa. Busca a própria beleza refletida no olhar dos outros. Ou apenas a morte. A minha morte de prazer? “A fotografia é uma testemunha, mas é uma testemunha do que já não existe. Um flerte com a morte.” Ela come uma deliciosa tapioca com queijo e presunto. Déjeuner du matin. Toma um pouco de suco de laranja. Bebe uma xícara de café com leite. Minha reinventada musa do poema de Prévert.
Ela, minutos depois, não resiste aos prazeres do doce, e decide comer um churro. Um churro, meu Deus! Subo aos céus. Uma linda mulher comendo churros é verdadeiramente uma experiência religiosa. Uma reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo, que não só é capaz de causar dor, mas de vislumbrar momentos de prazer fugazmente intensos. Sonho. Emociono-me com sua boca. Com seus lábios carnosos. Com a possibilidade de ter e dar prazer com a simples fricção de sua língua. Sinto um tesão incomum. Ela segura esse objeto-desejo com a mão direita, apertando delicadamente o churro com quatro de seus dedos. Apenas o seu dedo mínimo não está em contato direto com o seu objeto de cobiça momentâneo (como eu queria que ela estivesse me acariciando).
Ela busca a melhor forma para dar a primeira mordida enquanto admira a imperfeição imponente do doce que vai abocanhar. Vira o rosto para o lado direito e para o lado esquerdo. Abre levemente os grandes lábios. Ai! No limiar do contato desse néctar com sua língua, ela fecha inconscientemente os olhos. Quer viver a sua religiosa, deleitosa e egoísta experiência de gozo sem a apreensão visual. Apenas com a memória fálica.
Ela dá a primeira mordida no churro de chocolate. O chocolate escorre pelos seus dedos, pela sua boca, pelos seus lábios. Ela, em sobressalto, abre os olhos e esboça surpresa e admiração diante de sua obra. Diante da mordida pecaminosa. Diante do deleite do chocolate. “Come chocolates pequena suja. Come chocolates”. Ela sente um misto de perplexidade e encanto. Passa rapidamente, e com imensa destreza, a língua ao redor dos seus lábios para que o chocolate deixe de escorrer. Lambe urgentemente os dedos, a palma da mão, as unhas. Troca, ansiosa, o churro de mão para lamber o resto do chocolate que insiste em derramar pelo seu braço. Corrige a bagunça que fez com pequenas lambidinhas. Respira fundo, sorri, se acalma.
Seu corpo anseia por mais um pedaço de prazer. Por mais um momento de delírio trepidante. Por mais metafísica. Ela, excitada, dá mais uma apetitosa mordida e sou eu também que sinto prazer. Uma vontade excessiva de me lambuzar, de me emporcalhar, de me regozijar com ela e com o churro. Ménage à trois. Ela lambisca o doce empanzinando-se de prazer, de endorfina, de sedução. E eu rezo solenemente. Oro por mim e por todos os voyeurs. Não vejo mais sentido algum para vida. Para a literatura. Para a minha doença. Não me questiono mais sobre filosofia alguma. Somente a sinto penetrar e percorrer o meu corpo. Estou diante do Sublime e da Beleza, e não consigo suportar essas sensações. Choro. Sou um mendigo. Não consigo mais ver o espetáculo que ela, e minhas invenções, me apresentam. Levanto ereto, mirando os céus. Sinto a existência do Brahma. Olhar e desejar assim, tão de perto, ainda que ela seja inacessível, corrompe. Maltrata. Vislumbro o meu pobre gozo. Mendicante, dirijo-me loucamente para o meu quarto. Para meu banheiro. Onã, o pequeno porco. “Weeshwashtkissima pooishthnapoohuck!”. Gozo para me reconciliar com a ficção da moça do meu ‘bom dia’.
Jacques Fux, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro ‘Antiterapias’. Autor do badalado livro ‘Brochadas: Confissões Sexuais de um Jovem Escritor’, publicado pela Editora Rocco.