A primeira vez que ouvi falar em Pontes de Miranda foi no primeiro ano da faculdade de Direito, durante uma aula de Sociologia Jurídica. Não lembro ao certo as palavras do professor, mas ele se referiu ao sujeito como se fosse uma espécie de titã multisciente — não apenas do Direito, mas de toda a cultura ocidental —, quase como um Aristóteles brasileiro. O marketing foi eficaz, fiquei com aquilo na cabeça durante dois ou três dias e logo tratei de buscar mais informações. O que descobri me deixou abismado.
Nascido na pequena São Luís do Quitunde em 1892, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda deixou a sua marca nos mais diversos campos dos saber: Direito, Filosofia, Sociologia, Matemática, Física, Biologia, Literatura etc. Era o tipo de pessoa que não se preocuparia com as recomendações da OMS relativas as oito horas de sono. Sua contribuição maior, sem dúvida, foi no Direito (sua área de formação), escrevendo aproximadamente 33 obras de fôlego. Só o seu famoso “Tratado de Direito Privado” — concebido em menos de vinte anos — é composto por 60 tomos, com uma média de 500 páginas cada (um total de 30.047 páginas). E a coisa fica mais impressionante quando lembramos que Pontes ou escrevia à mão ou ditava o conteúdo da obra, pois não sabia datilografar (também não sabia dirigir). Desenvolvido dentro de um raciocínio sistematizador e cartesiano com forte influência alemã – idioma no qual o jurista era fluente, além de inglês, francês, espanhol, latim e grego –, é comumente reconhecido entre os civilistas brasileiros como o maior livro jurídico do planeta Terra, tanto pela extensão quanto pela originalidade.
O Direito não foi a primeira opção na vida de Pontes de Miranda. Já demonstrando desde cedo uma inteligência assombrosa e muito interesse pelas ciências exatas, seu pai (que era matemático) lhe deu, aos 16 anos, uma passagem de navio para estudar matemática e física na Universidade de Oxford. Tudo caminhava nesse sentido até que, numa cena ainda comum, sua tia Francisca lhe chamou de canto e conseguiu dissuadi-lo da ideia, convencendo-o a cursar Direito sob o argumento de que, na recém-criada república brasileira, como cientista, Pontes não conseguiria manter o seu hábito de comprar botas e sapatos caros; tornar-se bacharel seria um caminho mais seguro – um argumento que poderia ser transplantado com facilidade para o Brasil de hoje, convenhamos.
Mas a dedicação ao Direito não impediu o jurisconsulto de devotar-se a empreendimentos dentro das chamadas “ciências duras”, como a descoberta de uma bactéria (a “pontesiae”, assim denominada em sua homenagem) e até mesmo o desenvolvimento de uma tese na qual faz restrições à teoria da relatividade, por sugestão do próprio Einstein — isso mesmo, do próprio.
Ao que consta na biografia do jornalista Ivan Barros, no ano de 1924, Pontes de Miranda enviou uma carta a Albert Einstein em que expressava admiração pelo seu trabalho, mas ao mesmo tempo criticava suas afirmações sobre o encurvamento do espaço. O físico achou curioso que um advogado se interessasse pelo assunto e solicitou-lhe, através da Embaixada da Suíça, que desenvolvesse melhor sua tese. Pouco tempo depois, Pontes lhe enviou um calhamaço escrito em alemão intitulado “Representação do Espaço” (Vorstellung vom Raume). Einstein aprovou e recomendou que remetesse ao Congresso Internacional de Filosofia daquele ano, a ser realizado em Nápoles. Embora inicialmente recusado, pois o Brasil não estava inscrito no evento, o trabalho acabou sendo apresentado por sugestão do próprio Einstein, tendo sido acolhido por unanimidade.
Em 1919, Einstein ganhou fama mundial, após suas previsões sobre a deflexão da luz se confirmarem no céu do Ceará durante um eclipse. A partir daí, na década de 20, o cientista passou a percorrer o globo para divulgar sua teoria. Inicialmente, o Brasil não estava incluso no roteiro, mas tudo mudou quando o rabino Isaiah Raffalovich tomou conhecimento de que o físico alemão viria à Argentina e sugeriu à direção da Universidade do Rio de Janeiro que lhe fizesse um convite oficial. Einstein prontamente aceitou, desembarcando no Rio em 21 de março de 1925. Foi recebido por uma comissão de jornalistas, cientistas e membros da comunidade judaica. Nesse mesmo dia, extasiado pela beleza da paisagem, proferiu a famosa frase: “O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil”. Durante sua estada, Einstein teve vários encontros com Pontes de Miranda. Um deles foi na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Após o término da palestra do cientista mais famoso do mundo, o alagoano subiu no palco e, num alemão fluente, teceu diversas considerações sobre a teoria da relatividade. Einstein se mostrou lisonjeado.
A amizade entre os dois se fortaleceu quase vinte anos depois, quando Pontes de Miranda foi à Nova York para representar o Brasil na Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1941. O jurista, além de multirreincidente em façanhas intelectuais, era muito bem relacionado, tendo ocupado diversos cargos importantes na república. Além de advogado, foi juiz da 1ª vara de órfãos, desembargador do Tribunal de Justiça de Guanabara, Consultor Jurídico da V Conferência Panamericana do Chile e Embaixador do Brasil na Colômbia. Também recusou alguns cargos, como o de Embaixador do Brasil na Alemanha (não desejava se aproximar do governo nazista), de Ministro do STF e de Ministro da Justiça durante o governo Vagas, porque não queria compactuar com uma ditadura.
Em uma entrevista — ao que parece, muito pouco conhecida — dada ao Estado de S. Paulo em 1979, poucos meses antes de seu falecimento, Pontes de Miranda forneceu detalhes sobre a convivência com Albert Einstein em Nova York. Segundo o jurista, eles almoçavam com frequência num restaurante francês chamado “Canadiram”, onde conversavam por horas a fio. Numa das vezes, ele explicou ao cientista que estava trabalhando há 16 anos na classificação matemática das sentenças, ao que este respondeu impressionado: “Olhe, não perca tempo na diplomacia. Nem com assuntos de guerra. Isso que está fazendo é muito mais importante para a humanidade”. Pode parecer estranho nos dias de hoje uma pesquisa que relacione Direito com Matemática. Realmente, muitos escolhem o curso apenas para fugir dos números. Se presenciasse esse fenômeno, Pontes de Miranda provavelmente morreria de desgosto. Estamos falando de um homem que foi forjado até o último fio de cabelo no positivismo do século passado. Naquela época, era comum a pretensão de estender o rigor das ciências naturais às ciências sociais, concebendo-se uma espécie de “física social”, na qual seria possível explicar os fenômenos da sociedade através de leis muito bem delimitadas. Embora não tenha assinado embaixo de tudo o que Auguste Comte — o pai do positivismo — escreveu, Pontes desenvolveu suas pesquisas nesse horizonte, buscando conferir um tratamento verdadeiramente científico a temas que muitas vezes são desenvolvidos dentro de um discurso simplista e repleto de retórica. Assim, nos seus livros de Direito, Filosofia e Sociologia não é difícil nos depararmos com fórmulas matemáticas e dados quantitativos.
Mas, voltando ao assunto, os encontros com Einstein em Nova York eram frequentes. Certo dia, após um almoço na Universidade de Princeton — onde o físico lecionava —, os dois resolveram sair para passear. Em dado momento, Pontes expressou como tinha sorte de poder estar na presença do maior cérebro do mundo, mas Einstein protestou, dizendo que a grande inteligência da humanidade, numa categoria acima de Leibniz, morava lá mesmo em Princeton. Disse ainda que o apresentaria, era um professor recluso e que fazia questão de sigilo absoluto. Imagino como Pontes deve ter se sentido, é a mesma coisa que Pelé, no seu auge, falar que o maior jogador de futebol do mundo mora ali na esquina.
Um tempo depois, o encontro aconteceu. O tal professor logo perguntou: “Albert me disse que sua vocação é a Matemática. Nesse caso, por que está perdendo tempo com Direito?”. Pontes explicou então que estava fazendo a classificação matemática das sentenças e acrescentou que já havia lido o seu trabalho sobre proposições existenciais e declarativas. Ao final, o misterioso professor lhe deu algumas sugestões para a pesquisa que se mostraram valiosas. Mas fica a pergunta, quem era o tal professor? Quem era esse homem ao qual Einstein se referiu como sendo um intelecto superior ao de Leibniz?
Indagado na entrevista ao Estado de S. Paulo sobre a identidade, o jurista — então com 87 anos — disse que não se lembrava do nome, mas que provavelmente era “Kirk”, um judeu alemão. Pela descrição dada por Pontes e pelo comentário de Einstein, suponho que só possa ser o matemático Kurt Gödel, responsável pelos “teoremas da incompletude”. Há vários relatos da admiração que Einstein sentia por ele. Embora Gödel não fosse judeu, era bastante confundido com um, pois frequentava vários ciclos de intelectuais judeus. Segundo o “Institute for Advanced Study”, da Universidade de Princeton, chegou, inclusive, a sofrer ataques antissemitas.
Seja como for, o episódio é representativo dos altos círculos que o alagoano frequentava, de Albert Einstein e (provavelmente) Kurt Gödel até o papa João 23, que, segundo consta, o recebeu pessoalmente no Vaticano.
Além de humanista e cientista, Pontes arranjou tempo para se tornar escritor. Publicou, dentre outros livros de poesia, “A Sabedoria dos Instintos” e, em francês, “Poèmes et chansons” (publicado em Mônaco). Também aí teve destaque e, pouco antes de morrer, se tornou Imortal da Academia Brasileira de Letras (anteriormente, havia perdido a vaga para Rachel de Queiroz).
Todo país tem aquele personagem dono de uma ampla erudição e uma vida curiosa — um prato cheio para algum biógrafo corajoso. O Japão teve Yukio Mishima, a Inglaterra teve Richard Francis Burton, nós tivemos Pontes de Miranda. Assim como Proust, é um desses autores que sofre pela extensão e complexidade da obra, sendo muito citado e pouco lido. Uma pesquisa de 2019 da Associação de Magistrados Brasileiros revelou que o alagoano é o doutrinador preferido dos juízes. Em contrapartida, suas obras não são reeditadas há anos, só sendo encontradas em sebos e arquivos de bibliotecas. Não é difícil descobrir os 60 volumes do “Tratado de Direito Privado” pegando pó em algum escritório de advocacia antediluviano.