Indicado ao Oscar e assistido por mais de 200 milhões de pessoas, um dos maiores suspenses da história está na Netflix Divulgação / 20th Century Studios

Indicado ao Oscar e assistido por mais de 200 milhões de pessoas, um dos maiores suspenses da história está na Netflix

Se for verdade o que alegava o crítico e roteirista norte-americano Roger Ebert (1942-2013) — um dos homens que pensou o cinema com mais profundidade — ao dizer que “quase nunca importa sobre o que diz um enredo, mas de que maneira diz sobre o que diz”, então “Garota Exemplar”, dirigido por David Fincher, parte do conceito mais paradigmaticamente justo acerca do que é um bom filme. A história, lançada em 2 de outubro de 2014, é um modelo de como reptar a audiência, inspirando-lhe a suposição de que, com efeito, havia um segredo a ser descoberto quando, na verdade, o coração da trama estava à vista de todos, e ainda assim oculto.

Adaptar uma narrativa literária para o cinema de forma original, sem corromper a essência primeira do texto, é um desafio que a maioria dos diretores considera hercúleo, quando não um trabalho de Sísifo. David Fincher dribla a mitologia grega, escala a montanha e não permite que o roteiro — tirado do livro homônimo da jornalista e escritora Gillian Flynn, publicado em 2012 — despenque ribanceira abaixo. Tanto no trabalho de Flynn como em sua leitura cinematográfica, Nick e Amy Dunne são apresentados ao espectador como o casal perfeito, ela mais do que o marido. Depois de passar toda a infância tendo a intimidade exposta pelos pais em livros de autoajuda para crianças, a personagem central, vendida nas publicações como a Amazing Amy, a “Amy fascinante” (ou “exemplar”, como o título sugere), torna-se na vida como ela é a protagonista dos relatos delirantes que era obrigada a incorporar. Tudo em Amy tem alguma coisa de farsesco, começando por sua completa submissão ao marido, um professor que não é rico como ela sempre foi, e que talvez por isso seja tão atraente aos seus olhos.

A vida dos dois seguiria o padrão do “e viveram felizes para sempre” dos contos de fada, não fosse pela necessidade repentina de mudança da feérica Nova York para o pacato Missouri, no centro-leste dos Estados Unidos, devido ao câncer detectado na mãe de Nick. No dia em que celebram o quinto aniversário de casamento, ele volta para casa depois de um dia de trabalho, atesta que tudo foi colocado de pernas para o ar e que Amy sumiu. O que se tem por resposta é o habitual circo midiático, com hordas de jornalistas ávidos por um furo, coletivas de imprensa e até um comitê para recebimento de informações, organizado pelos pais da desaparecida. Nick parecia estar preparado para tudo isso; no entanto, no momento em que percebe que toda a cena fora adequada para que parecesse o suspeito número um do crime, sobe das entranhas do personagem de Ben Affleck uma indignação calculadamente passional que o roteiro de Fincher e Flynn usa para romper a primeira guinada da trama, sucedida por muitas outras.

É recompensador para quem assiste quando o casal de protagonistas de um filme consegue igual destaque, cada um colaborando com o trabalho do outro, administrando seus egos de maneira civilizada, o que só pode jogar a favor. O Nick de Ben Affleck marca a fase madura de sua vida e carreira, muito bem-sucedida desde jovem graças a empreitadas como “Gênio Indomável” (1997), com cujo protagonista, o amigo Matt Damon, escreveu o roteiro que coube a Gus van Sant dirigir — Affleck e Damon ganharam o Oscar de Melhor Roteiro Original por este trabalho em 1998. A partir daí, a evolução de seu desempenho é visível, sem a verborreia e o abuso de expressões faciais, típicos dos anos 1990 — como se nota, por exemplo, na sobriedade judiciosa de “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça” (2016), dirigido por Zack Snyder, e “Argo” (2012), que ele mesmo dirigiu —, com a vantagem de que, agora, essa economia dramática mostra-se perfeitamente compatível para um homem de quase cinquenta anos. Em “Garota Exemplar”, Affleck exibe com gosto seu jeitão taciturno, sobretudo na pele de um marido engolfado por circunstâncias assustadoramente sombrias. Nem seria necessário mencionar o quão importante é o desempenho de Rosamund Pike. Com uma das atuações mais notáveis de sua carreira, Pike capta todas as nuances de uma personagem tão densa quanto poucas já exibidas na tela grande, dando vida a uma mulher gravemente perturbada, que se transforma naquilo de que mais tinha aversão, embora a culpa não seja toda dela, já que foi criada para acreditar era, literalmente, o centro das atenções.

Usando recursos narrativos brilhantemente explorados por Alfred Hitchcock (1899-1980) em “Um Corpo que Cai” (1958) e “Psicose” (1960), como a descoberta do segredo já na metade do filme e o fato de uma das partes de um relacionamento idealizar tanto o parceiro a ponto de querer transformá-lo em outra pessoa — e, na prática, consegui-lo mesmo —, Fincher ilumina as questões eternas que cercam o casamento, a instituição mais falida e mais invejada da História. Uma união é feita de momentos bons e outros nem tanto, e todo casal tem seus problemas, aparentemente insolúveis, que muitas vezes só precisam de uma conversa franca para que os dois voltem a se entender. Um processo simples, mas inviável se só encontra imaturidade, por um lado, e pedantismo, por outro.


Filme: Garota Exemplar
Direção: David Fincher
Ano: 2014
Gênero: Suspense
Nota: 9/10