Bula de Livro: O Náufrago, de Thomas Bernhard

Bula de Livro: O Náufrago, de Thomas Bernhard

Meninas e meninos, li o romance “O Náufrago”, de Thomas Bernhard, e conheci um dos maiores personagens da literatura contemporânea. Seu narrador-protagonista é um homem perturbado, deliciosamente pedante, aristocrático e iconoclasta. Ele não sofre pelo mundo; despreza-o. Também não lamenta suas tragédias pessoais. É justamente esse afastamento pragmático que torna sua tragédia grandiosa. Lembra quase um niilista ao estilo de “O Estrangeiro”, de Camus.

Mais do que se apoiar em um enredo, “O Náufrago” se sustenta numa situação exaustivamente examinada sob diversos ângulos. Um antigo colega de conservatório de música cometeu suicídio. O suicida, chamado Wertheimer, estava destinado a ser um dos grandes pianistas do século 20. De fato, tornou-se um intérprete respeitado, mas aquém das expectativas. Segundo o narrador de “O Náufrago”, tudo se perdeu no momento em que Wertheimer, um grande talento, ouviu o então jovem virtuose Glenn Gould tocar. Compreendeu que, por melhor que fosse, jamais poderia se comparar ao gênio de Gould. Começou a morrer ali. Certamente, encontramos aqui referências à relação entre Mozart e Salieri.

O Naufrago de Thomas Bernhard copiar
O Náufrago, de Thomas Bernhard (Companhia das Letras,‎ 144 páginas)

Sem condescendência, o narrador não vê no suicídio do amigo um episódio com marcas de grandeza épica, que talvez Wertheimer almejasse. O considerava um homem nobre e profundo, injustiçado pelo destino. Longe de concordar, o narrador julga Wertheimer um covarde que morreu de forma tola, apenas para contrariar a irmã recém-casada, sob ecos de sua não aceitação de dividir o mundo com a absurda grandiosidade de Glenn Gould. Se ele se identifica com esse ato extremo, é porque também não vê muito sentido em sua própria existência. Espera apenas morrer (e viver) com alguma dignidade. Por isso, escreve. Abandonou a música para escrever, assim como Thomas Bernhard fez. Opta por ficar escrevendo em vez de comparecer ao enterro do amigo.

O que nos leva diretamente ao estilo de “O Náufrago”. Suas principais características são as constantes repetições de palavras e o caráter perdulário do enredo, onde o mesmo episódio pode ser contado e recontado diversas vezes, com mínimas variações, sem preocupação com uma narrativa linear. O narrador de “O Náufrago” pode ser descrito como um homem de espírito, um pensador sem método e sem preocupações metodológicas, refletindo sobre episódios de sua vida. Não parece ser uma questão de precisão matemática, mas de deliberada imprecisão. Essa imprecisão é uma marca do estilo de Bernhard, conferindo-lhe originalidade.

Um exemplo está neste trecho: “Eu era muito melhor que a maioria dos outros estudantes da academia, pensei; e, de um momento para outro, parei. Isso me fez forte, pensei, mais forte do que aqueles que não pararam e que não eram melhores do que eu. Eles encontraram no diletantismo um refúgio perpétuo, autodenominando-se professores e se deixando cobrir de distinções e condecorações, pensei. Todos esses idiotas musicais que concluíram os estudos nas academias e se puseram a atuar como concertistas, como se diz, pensei. Eu nunca me tornei um concertista, pensei”.

Considero cômica a imagem de Thomas Bernhard, que em “Origem”, seu volume de memórias, se apresentou como um “encrenqueiro”, contando obsessivamente quantas vezes deveria repetir uma palavra na mesma página para conseguir o efeito sonoro desejado. A repetição existe, é fato, mas ela se deve basicamente ao seu ouvido musical. Não se trata de uma musicalidade precisa, como a de um músico erudito — vocação que abandonou —, mas de um talentoso improvisador de jazz, focado em fazer infinitas variações sobre o mesmo tema, sem maiores preocupações com o maestro ou a partitura.

Esse aspecto de improviso não diminui o livro. Uma obra de arte de primeira grandeza pode ter entre seus ingredientes pitadas de irresponsabilidade e acaso. Nem tudo é sangue, suor e lágrimas na república das letras. A geração beat é prova disso. Às vezes, a pressa pode ser amiga de algum estranho tipo de perfeição. Nem todo autor é um Goethe, que passou décadas escrevendo “Fausto”, ou um James Joyce, que carregou seu “Finnegan’s Wake” durante anos como um “work in progress”.

O “encrenqueiro” Thomas Bernhard conseguiu um efeito estético extraordinário ao manipular o caos estilizado do universo narrativo de “O Náufrago”. Se não foi isso, tal como um náufrago, boiei.


Livro: O Náufrago  
Autor: Thomas Bernhard
Tradução: Sérgio Tellaroli
Páginas: 140
Editora: Companhia das Letras
Nota: 10/10

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.