Razão e sensibilidade em Romeu e Julieta

Razão e sensibilidade em Romeu e Julieta

Observando a partir dos tempos atuais, em que vivemos dias, situações e sentimentos líquidos — detesto este termo diante da vulgarização e massificação às quais ele foi submetido —, como entendermos o jogo que existe entre razão e sensibilidade (pegando emprestado o título da compatriota de William Shakespeare, Jane Austen) na mais famosa história de amor e peça teatral de todos os tempos, “Romeu e Julieta”?

Para entendermos esse entrevero, que se tornou o símbolo romântico por excelência do século 18/19, vamos nos centrar nos personagens mais interessantes da trama, já que o seu enredo é extremamente conhecido.

Nem de longe, ao falar dos personagens mais interessantes, refiro-me ao Romeu. Ele está distante de ser o mais vibrante, mesmo sendo um dos protagonistas. Também não é Julieta, a moça de menos de quatorze anos, movida por uma paixão de energia atroz, voraz e, como ela mesma diz, num lampejo de maturidade de fazer inveja ao inconsequente Romeu, paixão e energias de natureza “… irrefletida / […] por demais precipitada, súbita”.

O casal mais passional da literatura não é o melhor elemento da peça, embora a trama gire em torno dele. Se os acontecimentos se dão em função da passionalidade dos dois jovens, cabe a nós observarmos os personagens racionais com atenção acentuada. É por via deles que a trama nos faz refletir. Neles podemos vislumbrar os limites e consequências de nossas escolhas, e como fugimos disso, tendendo sempre a jogar nas mãos do destino as tragédias por nós mesmos plantadas, incapazes de assumir os próprios erros.

Curioso perceber como as falas de Romeu e de Julieta personificam o amor, o destino, o sofrimento. Ora, destino e sentimento são coisas abstratas, e não seres de alma e vontade, capazes de conduzir os protagonistas, como se eles não tivessem vontade própria. A fala célebre de Romeu é um selo clássico do intento de desviar-se de responsabilidades: “Sou um joguete do destino”.

Então Romeu, ao saber que Julieta era uma Capuleto, deveria ter renunciado ao seu amor e seguido em frente? Ela deveria ter se casado com o pretendente natural desde o princípio, o belo e bem sucedido Paris? Não exatamente, mas, caso não estivéssemos diante de uma tragédia carregada de gestos de desmedida, como é natural do trágico, o engenho dos amantes teria urdido um modo de, sem grandes traumas, ter unido seus destinos sem o fim catastrófico para o qual caminharam. Mas assim não teríamos o trágico, e nem conflito que merecesse ser contado; ora, se de maturidade fosse coberto o amor que os une, se de prudência fosse guiado o sentimento que os enlaça, que mal poderia haver nesse lance de sorte (?) que fez com que seus caminhos se cruzassem?

As pedras angulares da peça são o dionisíaco Mercúcio e o cambiante Frei Lourenço. O Frei varia do aconselhamento meticuloso ao arquiteto de um plano absurdo, porém engenhoso — claro, se tivesse dado certo. Já Mercúcio destila, com habilidade singular, cínicas sentenças, e na sua morte amaldiçoa, sem pudor, as famílias rivais. Eles sabem que seguir instintos passionais pode dar errado. O mais interessante: eles sabem, mesmo sem saber que sabem, e isso tira de suas falas qualquer tom professoral. São esses dois personagens coadjuvantes o motor capaz de fazer a peça girar, mesmo girando em torno do casal. Eles jogam luz à escuridão da consciência de Romeu e Julieta, mesmo sem conseguir iluminá-las.

Frei e Mercúcio nos mostram duas alternativas para nos livrarmos da tragédia: o primeiro sugere a razão filosófica, mas não contemplativa. Uma ação subjugada ao pensamento, uma razão corajosa; o segundo nos chama para um deixar-se levar que a tudo torna pluma, convida-nos para viver e nada mais, apenas sentir os prazeres advindos dos dias, das horas. Não vê vantagem em nos deixarmos ser cooptados pelo amor, já que o amor, sendo cego, jamais acerta o alvo.

Julieta possui mérito inegável como personagem passional: é pura e inocente, e tem direito de ser. Por ser mulher, vivia e em rígidas restrições de liberdade. Sua idade — é quase uma criança — nos impede de esperar dela qualquer maturidade. Sem a pureza, como nos apiedarmos de sua dor e de seu sofrimento? Como compreendermos as suas posturas, mais inconsequentes do que corajosas? Como não vermos, nas inclinações permanentes ao suicídio, exagero típico de uma jovem ninfeta que jamais conheceu o amor, o sexo? Como não nos solidarizarmos com ela, se nem vislumbra os limites para os quais o sentimento e os prazeres carnais podem levar o ser humano?

Já Romeu, aos nossos olhos, parece carregado de romantismo e melancolia quase mórbidos. Suas falas são derramadas de lirismo, aproximam-se da afetação, de um ethos efeminado.

Chama a atenção em Romeu, desde o princípio, a atração pelo que não pode possuir. Sua primeira amada é Rosalinda. Esta sequer aparece na peça. Para ela escrevia poemas. Por ela passava noites acordado. Procurava Frei Lourenço para se confessar, encontrar consolo. Num repente mágico, que só o maneirismo e seus desajustes e desmedidas poderia conceder, a paixão por Rosalinda é desfeita. Julieta se torna seu caminho de felicidade.

Ora, como confiar em alguém que ama e deixa de amar com tanta facilidade e se apaixona, em sequência, por duas mulheres difíceis de possuir? Até mesmo seu amigo Benvólio — personagem genuinamente menos que coadjuvante, secundária até — aponta ter mais maturidade e razoabilidade que Romeu. Ele o incentiva a buscar outras belezas, compará-las de modo a aperceber-lhes o verdadeiro tamanho e intensidade, pois a visão do amor deturparia o real. O amigo Benvólio praticamente sugere um teste aos sentimentos de Romeu, rápidos no nascer, prenunciam serem rápidos no morrer.

As reações de Mercúcio a esses rompantes de Romeu são os pontos altos da peça, porque por via do humor e da zombaria indecentes, ele desregula o tom melancólico de Romeu. Diante dos monólogos de Mercúcio, sem qualquer nota de romantismo, Romeu tem, como opção única, calar-se ou responder com frases quase monossilábicas. A retórica e as metáforas de Mercúcio são irrespondíveis, não porque são dotadas de grandes volteios e embasamento filosófico, mas porque são sórdidas, carnais, rasteiras demais diante do etéreo amor que une o casal título; é o oposto do amigo, ao qual, muitas vezes, nitidamente parece devotar um afeto excêntrico, mais piedoso e pouco respeitoso, nunca estabelecido por alguma admiração.

Um bom exemplo dessa relação tensa entre os dois amigos díspares se dá na Cena IV, do Ato I. Romeu, na companhia dos amigos, vai à casa dos Capuleto, onde conhece Julieta. Lá acontece um baile de máscaras, para o qual obviamente nem ele, muito menos seus amigos, foram convidados (vão disfarçados). Antes da entrada Romeu trava um pequeno diálogo com Mercúcio, em sua primeira aparição:

Romeu: Por demais ferido estou eu pela flecha do amor, para que possa voar com suas leves asas; e tão prostrado me mantém, que não posso elevar-me além do negro desgosto! E sob o enorme peso do amor, sucumbo.

Mercúcio: Mas se caíres em cima, dominarás o amor com teu peso! Opressão demasiada para tão terno ser.

Romeu: Terno ser é o amor? Áspero demais, rude demais, vacilante demais e pungente como um espinho.

Mercúcio: Se o amor é áspero contigo, sê áspero com ele; se te traspassar, trespassa-o e acaba por dominá-lo. Dai-me uma caixa onde colocar meu rosto: uma máscara para outra máscara! Que me importa que algum olhar curioso advirta agora de minhas deformidades?! Eis aqui estas faces grosseiras que se ruborizarão por mim!”

O texto apresenta Mercúcio como oposto de Romeu. Até sua aparência destoa da do amigo: seu rosto, no único momento em que se sugere algo sobre ele, é composto de deformidades, enquanto Romeu, quando descrito, é a perfeição encarnada.

Mercúcio chega a zombar de um dos temas centrais da peça: os sonhos premonitórios de Romeu com relação às tragédias que o rodeiam. O amigo incrédulo diz, sem meias palavras, que os sonhos mentem e não nos revelam nada sobre o futuro.

Pois bem, o destino encaminha a tragédia para o seu fim. Tudo sairia perfeito, Romeu e Julieta vão se casar perante Deus. Terão sua primeira noite juntos, consumarão o casamento celebrado pelo Frei Lourenço, feito às escondidas, com o intento de encerrar o conflito entre as famílias. Mas há alguém nesse caminho.

Tebaldo é primo de Julieta, um personagem de caráter linear. Não passa por mudanças significativas, sendo violento e beligerante da primeira à última cena. Seu desejo de sangue é insaciável. Para ele jamais poderá haver acordo entre os Capuleto e os Montechio.

Tebaldo, em busca de conflito, depara-se com Mercúcio e Benvólio. Ele sabe que os dois são parceiros de Romeu. Mercúcio não procura briga, tão pouco foge dela, é espirituoso demais para assim agir. Romeu aparece. Tebaldo dirige as agressões e provocações todas para ele. Casado com Julieta, Romeu diz amá-lo como a um parente. Tebaldo ignora tais declarações e Mercúcio se irrita com as atitudes de Romeu, chamando-as de insuportáveis submissões. Mercúcio e Tebaldo se batem em duelo. Romeu se coloca entre os dois, e mesmo assim Mercúcio é ferido fatalmente.

Mercúcio apresenta-se terrível e belamente humano. Diante da morte causada por uma briga que não é sua, em contrário de se derreter em doces palavras ao amigo, amaldiçoa-o, assim como aos Capuleto e aos Montechio.

Romeu, diante da morte do melhor amigo, faz a curva da tragédia tomar rumo e o ato de desmedida tem seu prenúncio. Romeu mata Tebaldo, primo de Julieta. É condenado a exilar-se de Verona. Sua pena natural seria a morte, mas o contexto em que se deu a ação fez a sentença ser atenuada. Romeu aguarda a reação de Julieta. Enquanto o segundo julgamento — da amada — não sai, Romeu esconde-se e consola-se junto ao Frei Lourenço. Este tenta acalmá-lo, mostrar a sorte de lhe ter sobrado a vida, pois pelo assassinato, segundo os costumes, teria a existência ceifada. Romeu chora sem parar, quer se matar. Frei Lourenço se irrita e nos apresenta, bem ao gosto de Shakespeare, os tons e cores da consciência. Romeu é despido pelas falas do Frei, em um momento de pura magia e sabedoria literárias:

Frei Lourenço: És um homem? Tua forma apregoa que és; mas tuas lágrimas são de mulher e teus atos frenéticos denotam a fúria irrefletida de uma fera. Mulher deformada em forma de homem ou mal formada fera em forma de homem e de mulher. Por minha Santa Ordem, acreditava-te com disposições mais brandas. Mataste Tebaldo? E queres matar-te a ti mesmo? E matar tua esposa que vive de tua vida, praticando essa ação danada contra ti mesmo? Por que injurias teu nascimento, o céu, a terra, uma vez que teu nascimento, o céu, a terra estão em ti e queres perdê-los ao mesmo tempo? Cuidado, cuidado! Estás envilecendo tua figura, teu amor e tua razão, e, semelhante ao usurário, tudo tens em abundância e nada usas segundo o verdadeiro uso, o que daria realce à tua figura, a teu amor e a tua razão. Tua nobre figura é apenas uma imagem de cera desprovida de pujança varonil. Teus votos de terno amor, apenas falsas palavras que matam aquele amor que juraste guardar em teu peito. Tua razão, esse ornamento de tua figura e de teu amor, desviada do governo de uma e de outro, como a pólvora no polvarinho do saldado inábil, inflama-se graças à tua própria ignorância e te mutila com teu próprio meio de defesa. […] A lei, que ameaçava morte, se torna tua amiga, comutando a pena em exílio; nisto é igualmente feliz. Sobre teus ombros pesam uma carga de bênçãos. A felicidade te corteja, vestindo seus melhores atavios. E tu, entretanto, como moça obstinada e mal comportada, tu te enfadas com tua fortuna e com teu amor. Cuidado! Cuidado! Aqueles que assim fazem morrem miseráveis.”

A consciência de Frei Lourenço, não apenas a respeito de Romeu, mas de todo o conflito, dá a ele ares de onisciência. Em vários momentos ele diz recorrer à filosofia, e Romeu coloca em questão esse recurso, mas acredita em todo e qualquer sonho premonitório que possa vir a ter.

Entre os polos da razão e da sensibilidade a ação dramática se dá por inteiro. Muito mais que uma infeliz história de amor — consumida por seu sucesso, popularizada e consequentemente subestimada —, “Romeu e Julieta” é uma grande demonstração de como nossas escolhas são consequenciais e nunca devemos seguir somente aos impulsos do coração. A peça ainda nos dá, nesse esquema entre o razoável e o sensível, dois caminhos possíveis. Um, o de Mercúcio: cético, amoral, hedonista. Outro, de Frei Lourenço: parcimonioso, frugal e ao mesmo tempo engenhoso e corajoso. Ele nunca sugere a Romeu ou Julieta a contemplação: lutem pela felicidade, mas façam com responsabilidade.

O teórico Gustav Hocke, refletindo sobre o maneirismo, estilo ao qual Shakespeare está vinculado, diz ser “a metáfora de Shakespeare […] uma variedade associativa no sentido de uma união dos disparatados. Mas ela se nos revela mais intensamente na obra de Shakespeare (o drama era, para ele, uma metáfora ampliada)”.

Assim, pouco importa se o frescor do amor à primeira vista ainda ressoa em nossas mentes e corações como algo possível. Pouco importa se o amor de Romeu duraria e se manteria vigoroso como estava quando de sua morte. Não é esta a preocupação. Ela é, como sempre no maneirismo, uma metáfora, estranha e irregular, com personagens destoantes, que nos permitem rir e chorar de uma cena para a outra. São, antes de qualquer coisa, experiências de linguagem, temas e recortes de nossas próprias vidas, colocadas no texto ou no palco para nos reconhecermos nela, não literalmente, mas simbolicamente.

É esta peça, em seus desvarios e razoabilidades, uma tragédia da existência. Mais do que fazer chorar, pode nos fazer pensar: qual a medida justa da vida? Talvez um equilíbrio entre razão e sensibilidade.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.