O homem só percebe o quanto é humano quando sente dor

O homem só percebe o quanto é humano quando sente dor

A menina que foi estuprada por dezenas de homens. O gay que levou uma surra pelo motivo de ser homossexual. A mulher que apanhou do marido tirano e possessivo. O idoso maltratado pela família porque perdeu a sua serventia. A criança torturada porque chorou. Quando o homem vai extinguir a sua animalidade e ser, de fato, humano?

Parece que o instinto bárbaro vagueia no submundo de gente assim, besta, como animais desprovidos de raciocínio, como feras que desconhecem afeto e sensibilidade. Enquanto isso, nós, seres humanos dotados de raciocínio, discernimento, princípios e, essencialmente, sentimentos, somos compelidos a sobreviver no mesmo habitat que essas criaturas primitivas e, diga-se de passagem, desumanas.

É num piscar de olhos que esses vermes atacam. Golpeiam também com as suas justificativas pífias de que a culpa é das vítimas. E aos seus olhos truculentos e inescrupulosos, afinal, quem mais poderia ser culpado?

O homem só percebe o quanto é humano quando sente dor, quando a carne sangra, quando a ferida exposta lateja. A dor nossa, a dor de quem está próximo de nós, a dor de quem a gente ama sentida na nossa pele. Uma vez ouvi dizer que o sofrimento não é um castigo, e sim, um instrumento de mudança. A lógica é que o tormento é propulsor, pois ninguém aguenta viver na inércia da tortura. Mas e quando o padecimento não é causado pelas nossas próprias mãos? E quando somos atingidos pela maldade alheia? E quando somos nós o alvo da selvageria?

O que devemos fazer para desviar da crueldade, para domesticar a perversidade, para converter o ódio pelo mundo em amor ao próximo? Nós, realmente, fazemos algo para nos salvar desta esfera hostil em que nos encontramos?

De que adianta, por exemplo, mudar a foto de perfil quando surge alguma campanha, quando, na verdade, nós não nos mudamos por dentro? Não nos trocamos, não nos reformamos. Levantamos bandeiras pelas mais diversas causas e não ajudamos quem está ao nosso redor. Sequer olhamos para o lado. Nos preocupamos com a aparência externa, enquanto deveríamos nos atentar às melhorias internas. O objetivo deveria ser nos tornar indivíduos melhores, cidadãos mais evoluídos, ao invés de parecermos superiores apenas. É muita aparência para pouca essência. No final, sobram os discursos genéricos e ocos, sem movimento e sem atitude.

Se a dor é um mecanismo de transformação, façamos dela um incentivo para não a sentirmos outras vezes.

Onde houver injustiça, que a nossa voz não se cale. Onde houver violência, que não nos deixemos ferir pelo medo. Onde houver covardia, que não sejamos omissos. Quando a mudança nasce de dentro, para fora não há verme ou besta capaz de castrá-la.

Karen Curi

é jornalista.