O documentário mais perturbador da Netflix Divulgação / Netflix

O documentário mais perturbador da Netflix

“Contaminação: A Verdade sobre o que Comemos” vai além da narrativa usual dos documentários. Nenhuma evidência comprova a evolução do homo sapiens de forma mais assertiva do que uma prosaica ida ao supermercado da esquina. Se há duzentos mil anos a variação do hominídeo mais próxima do homem moderno como o conhecemos, não suportando mais basear sua dieta em frutos, larvas e, nos períodos de grandes chuvas, peixes e moluscos dos mares e rios, passou a arriscar-se com lanças, tacapes e machados atrás de cervos, javalis e mamutes, “decisão” fundamental para que, pelos dois mil séculos que se seguiram, atingisse o desenvolvimento cognitivo que o capacitou a inventar ferramentas, máquinas e veículos e se dedicasse ao aperfeiçoamento de serviços que poupam-lhe tempo e energia. Stephanie Soechtig leva o espectador por um breve passeio pela jornada da humanidade na Terra, para lembrar o historiador israelense Yuval Noah Harari, dentro de um carrinho, onde mais que proteínas, legumes, verduras e frutas, cabem reflexões sobre o destino do cidadão comum nesta quadra do dito progresso; o sentido (e, em especial, a falta de sentido) de determinados comportamentos; vícios das relações de consumo de que, lamentavelmente, não nos ressentimos mais; nossa inércia diante de fantasias que empurram-nos goela abaixo, junto com organismos microscópicos e a invencível ganância das megacorporações.

Na sequência inaugural, Soechtig conversa com Bill Marler, um advogado que fez da segurança alimentar um meio e um propósito de vida. Nos últimos trinta anos, Marler vem lutando por vítimas de graves surtos de bactérias, fungos e vírus encontrados… nas gôndolas das maiores redes varejistas dos Estados Unidos. Seguindo livremente o roteiro de Jeff Benedict, autor de “Poisoned: The True Story of the Deadly E. Coli Outbreak That Changed the Way Americans Eat” (“envenenados: a verdadeira história do surto mortal de E. Coli que mudou a maneira como os americanos comem” em tradução literal, sem edição em português), a diretora extrai de seu primeiro entrevistado afirmações indigestas. Na América, consumidores têm um encontro semanal com entre dez e quinze focos perenes de infestação por agentes patológicos, o que desemboca na estarrecedora marca de 48 milhões de casos de doenças de origem alimentar ao fim de doze meses, segundo o Center for Disease Control (CDC), órgão central que fiscaliza a aplicação de políticas de saúde pública no país. Um insuspeito maço de alface-romana é o inimigo número um dos técnicos e pesquisadores do CDC, o que o advogado verifica empiricamente: a maioria esmagadora das ações é de clientes intoxicados por essa variação de Lactuca sativa, mas ela não está só: melões cortados também podem ser um perigo, bem como frutas em geral (mesmos as caramelizadas), ovos, queijos, massas para bolo, o cereal do café da manhã… “Tudo?”, assusta-se Soechtig. Tudo.

O filme entra mais fundo no genuíno (e silencioso) escândalo das intoxicações de americanos por comida ao expor o caso de Darin Detwiler, professor da Northeastern University. Nos anos 1990, Detwiler perdeu um filho no surto de proliferação de Escherichia coli nos lanches da produtos da Jack in the Box, uma das mais tradicionais redes de fast food dos Estados Unidos. Para conter despesas, a carne servida na Jack in the Box era preparada sem que se respeitassem os devidos protocolos, além de levadas ao fogo por tempo insuficiente para eliminar a bactéria, que se reproduz celeremente no aparelho digestivo do ser humano e outros animais de sangue quente. Ao cabo de um dos julgamentos mais paradigmáticos para que se entenda a hegemonia do capitalismo sobre as relações e os afetos, Detwiler, representado por Marler, recebeu quinze milhões de dólares. Em seu 72º ano de operação, a Jack in the Box dispõe com 2200 unidades, sobretudo na Costa Oeste, e segue repetindo o mantra das empresas que se veem flagradas em irregularidades dessa natureza: as políticas de segurança alimentar dos Estados Unidos são as mais eficazes do mundo. Marler conseguiu que a salmonela fosse, enfim, banida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), o Ministério da Agricultura de lá. Mas a Escherichia coli ainda é permitida.


Filme: Contaminação: A Verdade sobre o que Comemos
Direção: Stephanie Soechtig
Ano: 2023
Gêneros: Documentário
Nota: 9/10