Prepare-se para se surpreender com o romance épico na Netflix inspirado em clássico da literatura Pascal Chantier / Arte France Cinéma

Prepare-se para se surpreender com o romance épico na Netflix inspirado em clássico da literatura

O ensaísta espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) dissera acertadamente que a vida é esquecimento. Precisamos escolher do que queremos nos lembrar, que trechos menos felizes de nossa jornada temos de varrer para debaixo do tapete da memória, que circunstâncias devem ocupar em nós um quinhão privilegiado de nossas vivências. Livremente inspirado em “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778), romance do iluminista francês Denis Diderot (1713-1784), o francês Emmanuel Mouret discorre sobre uma mulher avant la lettre e avant-garde em “Mademoiselle Vingança”, história ambientada numa época em que ideias como feminismo, empoderamento, liberdade de expressão e autorrespeito não iam além de uma vesana utopia para as mulheres, criaturas plácidas em sua inferioridade social, até que uma não aguenta mais e se rebela. Essa fábula sobre aristocratas entediados cuja grande diversão era urdir adultérios e outras ciladas emocionais no transcorrer do século 18 não por acaso assemelha-se muito a outro símbolo da literatura francesa do período, o que só confirma o argumento da elite abrutalhada que se esconde sob sedas e penteados ostensivos, elemento que Anne Bochon valoriza num minucioso trabalho de reconstituição da moda então vigente. Num mundo sem internet ou redes sociais, grã-finos de estirpes variegadas driblavam o esplim tramando uns contra os outros, como se lê em “Ligações Perigosas” (1782), o típico novelão, saído da pena de Choderlos de Laclos (1741-1803), esse desabridamente antropofagizado pela cultura pop contemporânea em boas versões pós-modernas a exemplo de “Segundas Intenções” (1999), dirigido por Roger Kumble, e o recentíssimo “Justiceiras” (2022), levado à tela por Jennifer Kaytin Robinson.

Madame de La Pommeraye, a personagem-título, é a viúva rica, já entrada em anos, mas ainda formosa, que se retira da corte do rei Luís 15 (1710-1774) para o luxo de uma opulenta herdade no interior. Cécile de France imprime a essa mulher a versatilidade que o papel exige, uma vez que, no começo da história, a protagonista apresenta-se num misto de conforto e senso de autoproteção quase paranoico, escaldada por relacionamentos quase trágicos e resistindo não sem alguma dificuldade às investidas do marquês d’Arcis, de Edouard Baer, um rematado casanova que se jacta de suas conquistas sem qualquer pejo, tendo o cuidado de fazer cada vítima se sentir como a primeira e a última. Baer absorve à perfeição a essência do personagem, um fescenino que, tal como o Sébastien Valmont de Laclos, sabe muito bem como tirar proveito das vulnerabilidades alheias, especialmente em se tratando de mulheres. Como sói acontecer em obras de ficção, desenrolam-se eventos que permitem que o marquês vá alongando sua estada na propriedade da Madame de La Pommeraye, que pensando estar diante de um novo homem, mais maduro, mais sereno, mais homem, finalmente, cede a seus encantos.

Na iminência do terceiro e último ato, Mouret junta as personagens que dão o arremate magníloquo a seu roteiro, sempre fiel à pena de Diderot. Entram em cena a Madame de Joncquieres da bem escalada Natalia Dontcheva, a moça outrora digna, mas caída em desgraça ao engravidar de outro nobre, que tal como o marquês d’Arcis faz à Madame de La Pommeraye, também a abandonara, e por óbvio, sua filha, a Mademoiselle de Joncquieres — o título em inglês igualmente alude a essa personagem como a responsável por conduzir o enredo, tamanho seu destaque —, vivida pela irresistível Alice Isaaz. “Mademoiselle Vingança” conserva o ar de folhetim setecentista ao condensar no encerramento as boas reviravoltas da trama, quando De France reaparece com a mesma proeminência da introdução, sem que os demais tipos se eclipsem. Alguns sabidos dizem que narrativas como essas estão datadas, “envelhecem mal” e xaropadas que tais. O noticiário dos grandes pequenos assuntos do dia a dia não se furta a desmenti-los sem embaraço algum.


Filme: Mademoiselle Vingança
Direção: Emmanuel Mouret
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.