Puseram o meu coração num moedor de carnes

Puseram o meu coração num moedor de carnes

Queridos filhos, mais do que perdoar, espero que vocês compreendam verdadeiramente os meus motivos. Por ora, não conseguirão falar comigo. Como perceberam, deixei o telefone celular sobre a mesa. Por questão de lógica, preferi não levá-lo na bolsa. Mesmo sendo burra como uma porta — como o seu pai costuma frisar — sei que é plenamente possível localizar um ser humano, onde quer que ele esteja, ainda que no raio-que-o-parta, desde que carregue consigo um smartphone.

Estou em rota de fuga — algo pensado há tempos — esperançosa em virar esse disco. Apesar do alívio, nunca me senti tão miserável. A sensação é de que puseram o meu coração num moedor de carnes. Por ora, não conte a seu pai sobre essa carta. Façam isso após dois, três, quatro, muitos dias. Nesse ínterim, digam que não sabem de mim. Deem-me mais tempo para escapar. Não duvido que ele partisse à minha caça, com planos de me levar de volta para casa ou coisa pior, do tipo dizer que me ama, que sempre me amou, que sempre me amará para, em seguida, quebrar o meu nariz com um soco.

Nunca lhes contei nada do que lerão a seguir. Regra geral, sou infeliz de nascença. Papai bebia aos borbotões, ficava tresloucado, a ponto de tirar a minha inocência antes mesmo da primeira menstruação. Mamãe sabia dos maus hábitos dele, mas, preferia não tomar partido de mim. Lembro-me de dizer a ela que eu não devia ter nascido, que andava exausta, que já tinha pensado na morte como uma saída, contudo, ela retrucava que era pecado falar daquele jeito, que criança não devia nunca cogitar em se matar, que as coisas iriam aos poucos melhorar, que o que passou passou, que papai era um homem bom, trabalhador, honesto, mas, um provedor que ficava fraco da cabeça sempre que bebia. E que eu deveria perdoá-lo e confiar plenamente no Altíssimo que tudo via e provia.

No dia em que tive a certeza de que Deus não existia, juntei uma mãozada de roupas dentro de uma sacola esgarçada e casquei fora de casa. Parece que o meu destino sempre foi fugir dos problemas. Portanto, aquela história de que os seus avós maternos morreram num fatídico acidente de carro, quando eu era criança, jamais aconteceu, senão na minha cabeça, por mera conveniência. Desde sempre, eu menti para vocês, meus filhos, porque a minha vida é uma ilha de desconsolo cercada de mentiras por todos os lados.

Quando conheci o seu pai, ele parecia um homem manso e tranquilo. Não sei se estava apaixonada por ele ou se me sentia segura, resgatada, após anos de isolamento num internato só para meninas. Não imaginava que eu tinha saído do espeto para cair na brasa. Desde os tempos de papai, nunca mais tinha feito sexo com outro homem. Podem imaginar como isso era um tormento para mim. Os anos foram se debulhando da espiga do tempo e teve um dia diferente, estranho, muito estranho, em que eu acordei diferente, estranha, muito estranha. Sentia, finalmente, um forte desejo de compartilhar intimidades com o meu marido. Então, aproveitei que ele saíra para o trabalho e comprei uma camisola com cheiro de nova de uma sacoleira que vendia lingerie para donas de casa, de porta em porta. Nunca vesti nada tão suave sobre a minha pele.

Caiu a noite. Esquentei a janta. Tomei um banho. Passei colônia. Vesti a novidade. Penso que ele estranhou desde o início. Perguntou quando, onde, como é que eu tinha arrumado dinheiro para comprar aquilo. Eu me sentia tão confiante, tão divertida, tão cheirosa, tão diferente. Não compreendia aquele cio inédito como um fenômeno repugnante. Atraquei-me com ele. Beijei o seu corpo. Fiz cócegas nos fracos dele. Eu ofegava. Eu gemia. Eu urrava. Eu cheguei mesmo a xingar, não posso mentir-lhes. De repente, ele se esquivou, me empurrou para o outro lado da cama: “Mulher, pare de transar como se fosse uma puta, pelo amor de Deus”.

A partir desse dia, o nosso casamento ficou mais entremeado ainda de desconfiança, de desencanto e de sofrimento. A vontade nunca mais voltou. Seu pai cismou que existiam outros homens. Nunca tive coragem de contar para ele sobre o passado de horror que vivi na companhia dos meus pais. Então, vieram as gravidezes e vocês nasceram para alegrar essa casa que era um sofrível recanto da amargura. Esperava que as coisas melhorassem, só que não. Seu pai desandou a beber, a se alterar, a ficar mais parecido com o papai, só que sem se preocupar em não fazer barulho ao me atacar, no meio da noite, enquanto vocês dormiam.

Por último, a gota d’água. Há poucos dias, vocês se lembram, quando chegamos do casamento da prima, ele estava alto, bêbado e, enquanto eu saía do banho e me penteava na frente do espelho, ele comentou que eu estava a cada dia mais parecida com uma sereia, quer dizer, metade mulher, metade baleia. Então, ele sorriu, virou de lado e dormiu que nem um bebê. Senti que já havia passado, em muito, da hora de cair fora.

Sei que vocês vão me apoiar nessa empreitada, afinal, já não são mais crianças. Cuidem-se bem, meus meninos. Não se preocupem comigo. Trago algum dinheiro comigo. Arrumarei um emprego para me manter. Eu me viro. Agora, mais do que nunca, resta claro para mim que, finalmente, as coisas vão se encaminhar e que vai dar tudo certo, se Deus quiser. Se ele não quiser, pelo simples fato de sequer existir, eu quero e isso já será o suficiente. Parodiando o poeta, estou viva, estou pronta, estou me amando de novo. Com carinho, para sempre, mamãe.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.