Stephen Chbosky esmera o argumento dos traumas da meninice e faz de “Extraordinário” (2017) um relato cortante das descobertas de um garoto incomum, às voltas com as pequenezas da vida para além de seu mundo particular. Baseado no romance de mesmo nome da escritora R.J. Palacio, o filme de Chbosky — também diretor de “As Vantagens de Ser Invisível” (2012), transcrição para o cinema do livro homônimo de sua própria lavra, publicado em 1999 — acompanha August Pullman num momento especial da vida do protagonista. Portador de uma anormalidade congênita rara que prejudica o pleno desenvolvimento de alguns órgãos, além de provocar sequelas na disposição dos ossos e da pele no rosto, Auggie já começou a vida lutando pela sobrevivência. Numa cena de flashback, o roteiro do diretor, coescrito com Jack Thorne e Steve Conrad, mostra o menino sendo retirado do ventre da mãe, Isabel, de Julia Roberts, de uma forma entre atabalhoada e cheia de susto, e o texto faz questão de ressaltar que ele se submetesse a 27 cirurgias e outros procedimentos terapêuticos logo a partir dos primeiros dias de nascido, como se nenhum exame de ultrassonografia tivesse sido capaz de detectar a síndrome. Detalhe que pode ser ignorado frente à bela história que começa a despontar.
Palacio disse ter tirado a ideia para o livro da visita a uma sorveteria onde se deparou com um garoto com as mesmas características que Auggie, mas é óbvio que decerto também se valeu da história de Roy Lee Dennis (1961-1978), o Rocky, morto dois meses antes de completar dezessete anos por complicações da displasia craniodiafisária, a nomenclatura técnica para a doença, que implica acúmulo de cálcio na ossatura do crânio e consequentes distúrbios de visão e comprometimento da capacidade auditiva. A história de Rocky, muito mais dramática que a do personagem central de “Extraordinário”, foi mostrada no ótimo “Marcas do Destino” (1985), em que Peter Bogdanovich (1939-2022) mostrou o comportamento de um rapaz que começa a aparecer para a vida no decorrer do power flower da década de 1970, em que o amor e o sexo eram livres, mas não para alguém como ele.
Chbosky faz de Auggie um garoto que leva a vida com muito menos preocupações, até porque ainda é uma criança e goza do amor incondicional da mãe — que costuma deixar de suficiente muito antes que elas se deem conta —, prontamente disposta a relegar a carreira como ilustradora de livros infantis para as calendas, bem como a tese de mestrado a que se dedicava, a fim de educá-lo em casa. É a própria personagem de Roberts quem decide que o filho está apto a seguir com os estudos numa escola convencional, a despeito dos protestos de Nate, o pai de Auggie, vivido por Owen Wilson. Roberts e Wilson mantêm a boa química ao longo da narrativa, mesmo nos momentos de raras discordâncias como esse, e o diretor ainda consegue explorar o conflito de Olivia, a irmã mais velha interpretada por Izabela Vidovic, que passa a não mais disfarçar sua mágoa por estar sempre a reboque do caçula e agora sem seu único esteio, a avó sem nome morta recentemente, uma participação dispensável de Sônia Braga.
“Extraordinário” deixa implícito que a ida de Auggie para a rede escolar comum, não obstante todos as dificuldades de adaptação; o bullying, combatido com rigor pelo diretor Tushman, de Mandy Patinkin; e as amizades verdadeiras e nem tanto era mesmo a melhor coisa a ser feita. Como em “O Quarto de Jack” (2015), de Lenny Abrahamson, Jacob Tremblay dá conta do recado com folga ao encarnar mais uma figura melancólica, e espantosamente maduro quanto a imprimir a Auggie as nuanças de euforia e acrimônia de uma vida que ganha cores mais fortes, mas está sempre dependendo da aprovação de estranhos — e, o pior, no que ele pode ter de mais íntimo. Tremblay é a alma do filme, sensível na medida e repleto de gatilhos filosóficos. Se a história tivesse se atido mais a Auggie, o extraordinário poderia chegar a sublime.
Filme: Extraordinário
Direção: Stephen Chbosky
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 9/10