Em um encontro para um café, a escritora Lêda Selma compartilhou comigo a história por trás de sua participação na introdução da icônica tarja “O Ministério da Saúde adverte: fumar prejudica a saúde” nos maços de cigarros. Tudo se iniciou em 1986, quando Lêda foi convocada para representar a Secretaria Estadual de Educação e Cultura de Goiás em uma campanha nacional voltada para o controle do tabagismo. Cada estado propôs suas respectivas ações. Em Goiás, foi concebido o projeto “Por amor não fume”, direcionado especialmente para o público escolar, por meio de concursos de redação e desenhos.
Mais tarde, o coordenador da comissão estadual transitou para o Ministério da Saúde, expandindo algumas das iniciativas goianas para uma escala nacional. Dentre elas, a mais notória tornou-se, sem dúvida, a mencionada tarja. Esta última posteriormente ganhou a adição de imagens representativas das enfermidades causadas pelo tabagismo, inspirando-se em uma ação pioneira instaurada na Finlândia em 1978, que desde então vinha ganhando aderência globalmente. Durante nossa conversa, Lêda Selma pontuou que, nos dias atuais, o racismo é um tema que merece atenção e reflexão. Sem conseguir conter minha curiosidade, propus que iniciássemos uma coletânea de micro contos abordando o racismo e antirracismo.
O entusiasmo com a ideia foi imediato. Naquele mesmo dia, lancei uma chamada para textos e estendi convites a renomadas personalidades, como Seu Casseta Hélio de la Peña, a escritora Cíntia Moscovich, e o poeta e artista plástico Marcelo Frazão, entre outros. Assim, com um compromisso de serviço público, a Revista Bula tem o prazer de apresentar a campanha “Por amor, não seja um racista idiota”, sob o lema “A Revista Bula adverte: o racismo prejudica sua saúde mental, assim como a saúde física e mental de todos”. Naturalmente, a seleção é inaugurada por um conto da própria Lêda Selma, e eu encerro a coletânea, atento e sempre em alerta contra a presença de qualquer racista mal-intencionado.
Gume do absurdo
O sangue desenha a morte no asfalto. Curiosos olham. Chora a criança. O cão fareja a inércia espalhada no chão. — Está ferido o cãozinho? — Não, seu poliça! O homem ali, sim! Por que você atirou? Ele não fez nada! — E daí? Tiro ao alvo. Cuide do seu cão! Vá. Não chore! Era só um preto, ora!
Lêda Selma
Quando a vida imita a piada
Numa blitz, o policial manda parar um humorista negro do Casseta & Planeta que prefere manter seu anonimato. Ele obedece. De longe, o guarda:
— Ô negão, não acha que tá muito preto pra dirigir esse carrão?
Não teve tempo de trocar de carro. Nem de cor.
Ao entregar os documentos, a autoridade o reconhece.
— Peraí, você é aquele cara do Casseta? Sou teu fã.
— É, tô vendo…
— Inclusive, desculpe ter insinuado que você é preto.
— Mas eu sou preto!
— Não é não.
— Por que não?
— Pô, você é da Globo… tá liberado.
Assim é a vida, se você é da Globo, nem preto é…
Helio de La Peña
Casta
No Mundo Azul, só entrava quem fosse cem por cento azul. Gente vermelha, amarela ou verde não era admitida àquela zona exclusiva, na qual conviviam os que eram absolutamente iguais. Até que, sem mais aviso, no seio do Mundo Azul, nasceu o primeiro daltônico.
Cíntia Moscovich
O racista contumaz
Antero se via um ariano. Discriminava todos que não fossem brancos. Por último, fez teste de ascendência para provar seu puro-sangue. Além do europeu, encontraram traços de árabe, negro, mongol, judeu e indígena. E até resquício neandertal. Passou a discriminar o cara do espelho.
Edival Lourenço
Filme P&B
Não é um filme, mas fujo do enredo e lhe cubro com a minha pele. Você me agride. Eu não revido.
Marcelo Frazão
Mais que constrangimento
A mãe sempre levava a filha à escola. Ambas, brancas e lindas. O pai levou-a por quatro dias, e no quinto, foi chamado para conversar com a diretora, que lhe questionou se não seria melhor a mãe se encarregar dessa tarefa. É mais normal. Sua menina é tão loira. Ele nunca se sentiu mais preto do que realmente era. E lascou um processo na escola.
Maria Helena Chein
Vidas negras
Vida negra importa, sim. O racismo não tem fim. Vida preta importa em mim. Vida negra importa e fim! A vida negra importa. Na porta de casa. No mundo afora. Haverá sempre justiça. Pro covarde e pro racista. A vida inteira importa. Sangue é vermelho em qualquer lugar. Meu coração pergunta: que ódio é esse no seu olhar? A dor do outro é refém. Dói em nós. Com violência ninguém cala a nossa voz.
Nasr Fayad Chaul
Shabbat
Judeu, eu? — Não. Cristão-novo. Em declínio, vivo entre eles. Confundem-me com esses aí, mas nem costeleta uso. Aqui posso andar sem destino. Tarde da noite do sábado, deixo o bar. Um golpe de bastão de beisebol: sangue, carro preto em fuga. A vítima usava peyos; célere, fujo.
Adalberto de Queiroz
A voz do sangue
O estampido de tiros no ar. O sangue salta para a morte, da mulher negra, ativista que queria ter voz e igualdade. Onde está a liberdade? A luz desponta no horizonte.
Maria de Fátima Gonçalves Lima
Superação
Quatro filhos. Única morena: DNA do pai. Os demais loiros: DNA da mãe. Nos folguedos e brigas infantis, entre irmãos, sua diferença era rótulo. Cabelos, pele, rosto e nariz: estigmatizados! Bullying foi alavanca? Única além do segundo grau e doutora. Compensação? Autoafirmação?
Elizabeth Abreu Caldeira Brito
W
Homem e mulher caminham. Não são negros, brancos ou pardos. Homem e mulher, seres humanos. Carregam nos olhos um poema. E é tudo.
Sônia Elizabeth
Genivaldos e Amarildos
O preto do Carrefour de Porto Alegre não merecia morrer esganado daquele jeito. Há formas mais eficientes de se matar pretos, como a câmara de gás no camburão de Sergipe e o choque elétrico. Em Pindorama, algum preto foi morrido agora! Agorinha… Preto prumero amorre, dispois espia se urdiu malefeito.
Nilson Jaime
Inferno
Era gordofóbico e carregava intranquilamente seus 140 quilos. Tinha raiva de gordo e sabia que, se morresse com aquele peso todo, iria para o inferno. Fui…
Hélverton Baiano
Escravidão
A enorme fazenda, centenária. Tudo rude, arcaico. No andar de baixo da casa, a senzala. Porão sujo, às traças. O fascínio do guia maior que o meu, relembrando os horrores da reclusão dos escravos. No surdo salão, os requintes daquela crueldade me chegavam do negrume das coisas.
C.J. Oliveira
Os invasores
O Negro Flor, brigando. Como estava na lufa-lufa, apenas ouvi: “Quero ver esses arrogantes discriminadores quando os ETs chegarem. Seres muito mais evoluídos do que nós. Vão pedir piedade, piedade. São mais atrasados que os animais dos ETs”.
Elias Antunes
Não é de hoje…
Roma. Século 16, 6h30 horas:
— Santidade, a encomenda que fizeram.
— Mas… o que é isso?
— O retrato de Jesus.
— Sim, mas essa cor?
— Era judeu, do Oriente Médio.
— Você quer receber?
— Sim. Preciso!
— Loiro.
— Mas…
— Olhos azuis. Você tem até amanhã.
Eliézer Bilemjiam
Confusão
— Vou acabar com a sua raça! — disse o antirracista.
Cristiano Siqueira
Cassinda, um quadro na sala em Minas
Pais africanos, Cassinda era sábia, trabalhavam na fazenda em Minas. Os pais morreram, marido e filho viajaram. Foi morar na cidade, perto dos Patrões cujos filhos amavam suas histórias e canções, lhe beijavam a mão. Hoje, Cassinda é um belo quadro na sala da casa dos Patrões.
Enio Magalhães Freire
Cores
Viu o arco-íris e amou, apagou o vermelho e ficou triste, tirou o azul e ficou muito chamativo, tirou o amarelo e ficou muito apagado, concluiu que a beleza das coisas está na diversidade. Abraçou o preto e se sentiu completo.
Línea Sousa e Silva
Blindada
Ele queria entender o porquê de, ao ver aquela mulher negra, uma luz divina irradiar estrelas fluidas e desconcertantes. Ele se sentia blindado, tendo se tornado um homem livre, alforriado pela delicadeza daquele olhar, e assim se esquecera do passado torturante nas ruas e no inferno. Agora, a vida exige outros ensaios.
Neilson Santana Santos
Escolher um lado até quando?
Era o primeiro dia de aula.
— Sente-se do lado direito.
— Porque não posso me sentar do lado esquerdo?
— É uma escolha. Tem uma divisão de pessoas.
— Mas foi sempre assim?
— Já foi pior. Antes morriam por existirem.
— Sou cega. O que há de errado nelas?
— A cor.
— Sei porque Deus me fez cega.
R. Traguetto
Olhos da fome
Aos domingos, estavam na feira. Eram muitos. Pálidos, mas também…“morenos”. Aos pares, pediam migalhas… imploravam! Mas eram ignorados, quando não maltratados, por olhos vistosos, cruéis. No canto ficavam amuados, perdidos, desolados, agora totalmente sem cor, muito menos… pastéis.
Rodrigo Celestino Rocha
Devoção
Padre Vincenzo — oriundi — traz no altar um São Benedito e leva pro seu quarto um outro — homônimo e igual àquele em tudo — mas de carne e osso.
Ernane Catroli
Maria Quitéria de Jesus Alvarenga
Maria Quitéria compareceu em uma empresa automobilística pleiteando uma vaga de vendedora de carros. Entretanto, lhe foi informado que a empresa não permitia contratar pessoas de cor negra, naquela vaga específica. Mas, caso desejasse, poderia se candidatar a uma vaga para fazer serviços administrativos no escritório de contabilidade da empresa.
Hulda Silva Cedro da Costa
Post antirracista
Não era produção de conteúdo. Era um grito público de dor e indignação. Levantou a voz, abraçou a causa, defendeu um irmão.
Inara Carvalho
O Jantar
Naquela mesa todos comiam, brancos e negros jantavam a fartura do respeito e brindavam o cálice da igualdade, marcharam junto ao palácio onde receberiam comendas de honra, primeiro os negros, não havia guerra e nem conflito, a igualdade era o Presidente da República.
Matheus Nunes
Fácil falar, falta fazer
— Pois então, estou te dizendo. As brancas fazem tranças por aí, por ser bonito, sem a história da coisa. — Falava indignada a mulher sentada em frente ao espelho.
— Ah, por mim tudo bem, cor interfere nos negócios não, se ocorresse, não estava te atendendo. — Disse a trancista.
Gabriela de Freitas
Pantera
O filho da polaca e do carcamano não hesitou quando perguntaram-lhe qual seria o tema de sua festa de aniversário de oito anos. Cruzou as mãos na altura do peito e gritou: — Wakanda forever!
Ademir Luiz