Os 10 melhores poemas da Geração Mimeógrafo ou Poesia Marginal

Os 10 melhores poemas da Geração Mimeógrafo ou Poesia Marginal

Pedimos aos leitores e colaboradores que apontassem os poemas mais significativos da Poesia Marginal ou Geração Mimeógrafo, movimento literário brasileiro que ocorreu entre os anos 1970 e 80, em função da censura imposta pela ditadura civil-militar. A principal característica do gênero foi a substituição dos meios tradicionais de circulação das obras — editoras e livrarias — por meios alternativos: pequenas tiragens com cópias mimeografadas comercializadas a baixo custo e vendidas de mão em mão. Embora alguns autores tenham tido mais de um poema entre os selecionados, foi publicado apenas um poema por autor. Abaixo, a lista baseada no número de citações. O resultado não pretende ser abrangente ou definitivo e corresponde apenas à opinião das pessoas consultadas. Os poemas selecionados foram publicados nos livros “26 Poetas Hoje”, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, e “Poesia Jovem Anos 70”, de Carlos Alberto M. Pereira e Heloísa Buarque de Hollanda.

Rápido e rasteiro
Chacal

vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida

Jogos florais
Cacaso

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com dois esses
que se escreve paçarinho?)

Cogito
Torquato neto

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

Uma noite
Afonso Henriques Neto

o tio cuspia pardais de cinco em cinco minutos.
esta grama de lágrimas forrando a alma inteira
(conforme se diz da jaula de nervos)
recebe os macios passos de toda a família
na casa evaporada

mais os vazios passos
de ela própria menina.

a avó puxava linhas de cor de dentro dos olhos.
uma gritaria de primos e bruxas escalava o vento
escalpelava a tempestade
pedaços de romã podre
no bolor e charco do tanque.

o pai conduzia a festa
como um barqueiro
puxando peixes mortos

nós
os irmãos
jogávamos no fogo
dentaduras pétalas tranças
fotografias cuspes aniversários
e sempre
uma canção
só cal e ossos
a mãe de nuvem parindo orquídeas no cimento.

Receita
Nicolas Behr

Ingredientes:

2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles

Modo de preparar

dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver

parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões

Tira teima
Bernardo Vilhena

Tire a faca do peito
e o medo dos olhos
Ponha uns óculos escuros
e saia por aí. Dando bandeira

Tire o nó da garganta
que a palavra corre fácil
sem desculpas nem contornos
Direta: do diafragma ao céu da boca

Tire o trinco da porta
liberte a corrente de ar
Deixe os bons ventos levantarem a poeira
levando o cisco ao olho grande

Tire a sorte na esquina
na primeira cigana ou no velho realejo
Leia o horóscopo e olhe o céu
lembre-se das estrelas e da estrada
Tire o corpo da reta
e o cu da seringa
que malandro é você, rapaz
o lado bom da faca é o cabo

Tire a mulher mais bonita
pra dançar e dance
Dance olhando dentro dos olhos
até que ela morra de vergonha

Tire o revólver e atire
a primeira pedra
a última palavra
a praga e a sorte
a peste, ou o vírus?

Muito obrigado
Francisco Alvim

Ao entrar na sala
cumprimentei-o com três palavras
boa tarde senhor
Sentei-me defronte dele
(como me pediu que fizesse)
Bonita vista
pena que nunca a aviste
Colhendo meu sangue: a agulha
enfiada na ponta do dedo
vai procurar a veia quase no sovaco
Discutir o assunto
fume do meu cigarro
deixa experimentar o seu
(Quanto ganhará este sujeito)
Blazer, roseta, o país voltando-lhe
no hábito do anel profissional
Afinal, meu velho, são trinta anos
hoje como ontem ao meio-dia
Uma cópia deste documento
que lhe confio em amizade
Sua experiência nos pode ser muito útil
não é incômodo algum
volte quando quiser

Soneto
Ana Cristina César

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?

Amor bastante
Paulo Leminski

quando eu vi você
tive uma ideia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

Olhos de ressaca
Geraldo Carneiro

minha deusa negra quando anoitece
desce as escadas do apartamento
e procura a estátua no centro da praça
onde faz o ponto provisoriamente

eu fico na cama pensando na vida
e quando me canso abro a janela
enxergando o porto e suas luzes foscas
o meu coração se queixa amargamente
penso na morena do andar de baixo
e no meu destino cego, sufocado
nesse edifício sórdido & sombrio
sempre mal e mal vivendo de favores

e a minha deusa corre os esgotos
essa rede obscura sob as cidades
desde que a noite é noite e o mundo é mundo
senhora das águas dos encanamentos

eu escuto o samba mais dolente & negro
e a luz difusa que vem do inferninho
no primeiro andar do prédio condenado
brilha nos meus tristes olhos de ressaca

e a minha deusa, a pantera do catre
consagrada à fome e à fertilidade
bebe o suor de um marinheiro turco
e às vezes os olhos onde a lua

eu recordo os laços na beira da cama
percorrendo o álbum de fotografias
e não me contendo enquanto me visto
chego à janela e grito pra estátua

se não fosse o espelho que me denuncia
e a obrigação de guerras e batalhas
eu me arvoraria a herói como você, meu caro
pra fazer barulho e preservar os cabarés.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.