Deus e o diabo no ‘Faroeste caboclo’

Deus e o diabo no ‘Faroeste caboclo’

O sonho do Brasil moderno foi a passagem da vida no meio rural para o espaço urbano. Como se imaginou a partir dos anos 1930, o deslocamento deveria trazer o trabalho decente nas indústrias, os direitos, as melhorias de saúde e educação, viver nas cidades. Ficaria para trás o universo do campo regido por atraso, laços de religião e exploração dos miseráveis, sobretudo aqueles que nasciam e moravam na região Nordeste. Essa narrativa da migração alimentou uma série de livros, filmes e músicas populares, desenhando um imaginário do país por um longo período.

Renato Russo
Renato Russo

Na galeria cultural da migração, uma das obras mais célebres é a canção “Faroeste caboclo”, da Legião Urbana. A música saiu no disco “Que País é Este? — 1978/1987”, que reuniu composições de várias épocas da banda e, sobretudo, de seu principal criador, o cantor Renato Russo (1960-1996). Com seus longos nove minutos de duração, a faixa é praticamente um conto literário, um causo, e trouxe a novidade de misturar sonoridades brasileiras, associadas ao sertão nordestino, com estilos do rock inglês (punk, pós-punk). 

“A música [Faroeste caboclo] é de 1979, anterior a ‘Eduardo e Mônica’, seguindo a mesma linha: uma estória completa com personagens, começo, meio e fim”, contou Renato Russo, num texto do encarte do disco lançado em outubro de 1987. Segundo o biógrafo do cantor, Carlos Marcelo, a inspiração da música veio da canção “Domingo no parque” (Gilberto Gil), dos sons de Raul Seixas e da faixa “Hurricane”, de Bob Dylan. Era clara a intenção de inventar a história fictícia de um personagem do Brasil moderno, numa cidade conhecida pela migração.  

Ouvida hoje, diante da situação do país no século 21, “Faroeste caboclo” é a narrativa final do sonho migratório. O personagem João de Santo Cristo reúne, por exemplo, traços do vaqueiro Fabiano, do jagunço Riobaldo, do pistoleiro Antônio das Mortes e do Bandido da Luz Vermelha — todos eles eternizados pela literatura e pelo cinema. A inventividade de Renato Russo, por sua vez, foi resgatar esse acúmulo cultural para apontar os primeiros sinais de uma realidade brutal, violenta, que ficaria explícita apenas décadas depois.

Estética “geração coca-cola”

Ao criar “Faroeste caboclo”, Renato Russo deu forma a um rock brasileiro que não apenas absorvia ou imitava as influências estrangeiras. Foi um tipo de canção que se nutria das últimas novidades da cena internacional, vindas dos Estados Unidos e da Inglaterra, e incorporava a tradição local. Ocorreu uma absorção do estrangeiro e, em seguida, a devolução de uma outra coisa nova e original. Tratava-se, como se pode ver e ouvir com segurança, de uma atualização da antropofagia dos modernistas (Oswald de Andrade) ou da estética da fome (Glauber Rocha).

No primeiro disco da Legião em 1985, a faixa “Geração Coca-Cola” tem o papel de ser quase um manifesto antropofágico do rock brasileiro. Apareceu nessa canção a imagem da deglutição cultural do que é de fora do Brasil e da resposta a ser enviada ao mundo na forma de uma nova expressão musical. “Desde pequenos nós comemos lixo/ Comercial e industrial/ Mas agora chegou nossa vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”, canta Renato Russo. A cusparada da Legião é aquele rock que não se limita a reproduzir o que fazem os gringos. 

Há um programa cultural, e por que não político, proposto pela nova geração do rock brasileiro naqueles anos. Renato Russo explicita a ideia: “Vamos fazer nosso dever de casa/ E aí, então, vocês vão ver/ Suas crianças derrubando reis/ Fazer comédia no cinema com as suas leis”. Também foi esse o sonho modernista e tropicalista que, ironicamente, vinha sendo deixado de lado na década de 1980. Mas ainda cabia fazer uma música jovem com cara e tradição brasileiras, usando as “leis” de fora do país – ou seja, aquelas do mercado global da cultura.

A estética “geração coca-cola” da Legião remete a Oswald de Andrade, que defendia nos anos 1920 a “devoração direta do inimigo valoroso”. O espírito indígena parte para cima do estrangeiro e o “devora” culturalmente, tal como fizeram com o Bispo Sardinha no período colonial. A atitude é ativa, jamais passiva. Também foi o espírito de Glauber Rocha, que criticou o “cinema digestivo” dos que sonharam em fazer filmes iguais aos dos norte-americanos e europeus. Para o diretor de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, a fome e a violência são os elementos que caracterizavam o Cinema Novo.

Glauber Rocha
O cineasta Glauber Rocha (Foto / Paulo Gaitan)

Ainda há semelhança com a provocação do crítico Paulo Emílio Salles Gomes: “O pior filme brasileiro é melhor (ou mais importante) que o melhor filme estrangeiro”. Ele emendou: “O filme ruim, pelo simples fato de emanar de nossa sociedade, tem a ver com todos nós, e adquire muitas vezes uma função reveladora. Abordar o cinema brasileiro de má qualidade implica numa luta tenaz contra o tédio, mas é raro que o esforço não seja compensado. O subdesenvolvimento é fastidioso, mas sua consciência é criativa”.

Tal qual o “filme ruim”, o rock brasileiro pode ser mais revelador e estimulante do que a última novidade da indústria fonográfica mundial. Ainda com base no cinema nacional, pode-se ouvir “Faroeste caboclo” como um desdobramento do ideal de um “faroeste do terceiro mundo”, conforme dizia de Rogério Sganzerla a respeito do seu filme “O Bandido da Luz Vermelha” (1967). Isso tudo vale hoje para o rap dos Racionais MCs, fortemente influenciado pela música negra dos Estados Unidos, mas totalmente com os olhos e vozes focados na vida da periferia urbana.

Herança rural

A palavra “faroeste” é uma adaptação criativa para a língua portuguesa, falada no Brasil, do gênero “western” do cinema. Histórias que se passavam no oeste distante dos Estados Unidos (o “far west”, daí o faroeste) e que ajudam a moldar o olhar para a realidade brasileira. Em Hollywood, criou-se todo um imaginário em torno de homens forjados no ambiente hostil de fronteira, onde a sociedade é disforme. Os conflitos se resolvem de formas arcaicas, à bala e são anteriores aos ritos e normas de sociedades contemporâneas surgidas a partir do século 19. 

No Brasil, as narrativas de caubói influenciaram a construção das figuras do cangaceiro e do jagunço no cinema e na televisão. O sertão aqui é um “far west” que se estende pelo coração do país. Também se combina com uma indústria brasileira de livros baratos com histórias do Velho Oeste e vendidos em bancas, tendo destaque no mercado na segunda metade do século 20. Renato Russo sabia, portanto, onde estava pisando ao criar um faroeste terceiro-mundista de João de Santo Cristo. Este personagem jamais seria apenas um caubói, mas sim o migrante que foge da miséria sertaneja e vai para uma metrópole.

Tanto quanto nos versos da letra, a estrutura narrativa de “Faroeste caboclo” se dá pelos sons. São eles que ajudam a desenhar o espaço geográfico. De saída, é possível identificar o sertão nordestino (uma área transversal que cobre vários estados) por meio do violão de Renato Russo, que segue a tradição do repente, baião, toadas, do cordel. Essa é a primeira parte da canção, toda ela focada no meio rural e na pequena cidade do menino João. Poderia ainda ser um romance de cordel nos tempos atuais, com peripécias e viagens do herói — e sobretudo o duelo final. 

Legião Urbana: capa do álbum Que País é Este? — 1978/1987 (Foto / Divulgação)

Um corte narrativo ocorre na música quando se conta a intenção de João de sair daquele meio hostil e já influenciado pela indústria cultural contemporânea: “Ele queria sair para ver o mar/ E as coisas que ele via na televisão.” Ver o mar foi a utopia de Glauber Rocha com os personagens Manuel e Rosa de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Originalmente, o sertão viraria “praia”, nas palavras dos conselheiristas descritos em “Os Sertões” (1902), de Euclides de Cunha. O gênio glauberiano transformou a imagem da “praia” em “mar”. 

Na letra, o ouvinte percebe nos primeiros versos a presença da religião, a começar pelo nome Cristo do personagem. “Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro/ Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.” Aparece a descrição da cor da pele, o que sugere relações sociais problemáticas: “Não entendia como a vida funcionava/ Discriminação por causa da sua classe e sua cor”. A questão racial é central na versão cinematográfica da canção, feita por René Sampaio em 2013. Também emerge a questão da violência do campo: “Quando criança, só pensava em ser bandido/ Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu”.

Capital da utopia

A ida para o mar ou para a metrópole encarnou o ideal de modernização do Brasil no século 20. É a narrativa da migração tão bem solidificada num romance como “Seara Vermelha” (1946), de Jorge Amado, ou no filme “Lula, Filho do Brasil” (2009), de Fábio Barreto. Nada mais claro e emblemático do ideal migratório do que a biografia do menino do sertão que se muda para São Paulo, vira metalúrgico da indústria e, por fim, chega ao cargo político máximo do país. Mas a vida de João de Santo Cristo se coloca como uma contra-narrativa dessa utopia.

O destino de João é Brasília, justamente o símbolo máximo da utopia modernista do país. “Ele ficou bestificado com a cidade/ Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal”, canta Renato, ainda dedilhando o violão e dando continuidade ao sonho do personagem. A cidade se apresenta como espaço das luzes, da iluminação, da racionalidade. A integração daquele sertanejo acontece por meio do mundo do trabalho, com um emprego de carpinteiro que remonta à Bíblia: “Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro/ Ganhava cem mil por mês em Taguatinga”.

O ritmo da cidade é pontuado pelo violão mais acelerado e pela descrição da nova vida do personagem. “Na sexta-feira, ia pra zona da cidade/ Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador.” A fantasia do amor, do sexo, se concretiza pelas relações monetárias da prostituição. O dinheiro é o motor da modernização. Aos poucos, porém, o sonho positivo do migrante começa a tomar as formas negativas do real. Estar acordado pode ser bem pior do que um pesadelo do sono: “E Santo Cristo até a morte trabalhava/ Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar”.

Marcada pelo trabalho extenuante, a feição da metrópole ganha traços novos na mudança do ritmo da música. O violão sertanejo dá lugar à batida do reggae jamaicano, por conta do negócio das drogas descoberto por João. “Logo, logo os malucos da cidade souberam da novidade/ Tem bagulho bom aí/ E João de Santo Cristo ficou rico/ E acabou com todos os traficantes dali.” O personagem com nome religioso é apresentado ao universo diabólico do mercado das drogas e, como sempre, do enriquecimento. Tem início o entra-e-sai do personagem no mundo criminal.

Brasília: símbolo máximo da utopia modernista do país

Uma das sacadas de Renato Russo em “Faroeste caboclo” foi desenhar o nascente mercado do crime e das drogas. Algo que só ficaria evidente anos ou décadas depois. Na música, a nova realidade se apresenta na amizade com Pablo, que abre as portas para a prosperidade, mesmo que ilícita. “Pablo trazia o contrabando da Bolívia/ E Santo Cristo revendia em Planaltina.” Em seguida, os negócios se diversificam, e as zonas cinzentas (legal/ilegal) vão para o primeiro plano: “Mas de repente, sob uma má influência/ Dos boyzinhos da cidade, começou a roubar”.

Crime é trabalho

Na fase nova de João de Santo Cristo, a música descamba para o ritmo acelerado do punk inglês. Guitarras distorcidas sobressaem, e Renato Russo narra a entrada no lado obscuro da vida. “Agora o Santo Cristo era bandido/ Destemido e temido no Distrito Federal/ Não tinha nenhum medo de polícia/ Capitão ou traficante, playboy ou general”. Ele cumpria assim o destino traçado no início da narrativa: “Quando criança, [João] só pensava em ser bandido”. O crime se torna um trabalho como outro qualquer.

O violão de Renato Russo retorna ao primeiro plano com a aparição de Maria Lúcia, a namorada de João. Ela é o contraponto sentimental para aquela vida louca (ou loka) que alterna a venda de drogas, as passagens pela prisão e o surgimento de concorrentes no tráfico. O momento é de descida aos infernos, como já se anunciava em “Conexão amazônica” (“Os tambores da selva já começaram a rufar/ A cocaína não vai chegar”), outra música da Legião Urbana que antecipa o século 21. Neste ponto, a cidade moderna e utópica vira trevas, com os personagens diabólicos Pablo e Jeremias.

Nessa visão antecipatória de Renato Russo, há a mistura de trabalho (salário, expediente) e atuação em mercados ilegais (comércio de drogas). E pelo caminho, aparecem até serviços para a ditadura militar, oferecidos por um “senhor de alta classe”. Mas João repudia a oferta de maneira enfática: “Não boto bomba em banca de jornal/ Nem em colégio de criança, isso eu não faço, não/ E não protejo general de dez estrelas/ Que fica atrás da mesa com o cu na mão”. Ou seja, o país havia mergulhado num poço onde não se via mais o fundo.

O duelo final, tão clássico no faroeste, é a demonstração de que a indústria da cultura deglute a vida e vomita a morte. Trata-se do espetáculo da violência, antecipado pelo cinema marginal de Sganzerla. Não haverá revolução social, nem os heróis bandidos do Cinema Novo. Renato Russo se apropria dos recursos do cinema e “cospe” de volta a história de um tiroteio no lote 14. Poderia bem ser um acerto de contas atual de facções do narcotráfico. “E então o Jeremias pra um duelo ele chamou/ Amanhã, às duas horas, na Ceilândia/ Em frente ao lote catorze, e é pra lá que eu vou.”

A cena do duelo delineia o que seria um “reality show” dos tempos de hoje. “E o Santo Cristo não sabia o que fazer/ Quando viu o repórter da televisão/ Que deu notícia do duelo na TV/ Dizendo a hora, e o local e a razão”, canta Renato, acompanhado por um som punk ainda mais veloz. A mídia devora tudo e todos. “João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir/ E olhou pro sorveteiro e pras câmeras/ E a gente da TV que filmava tudo ali.” A própria forma do faroeste se metamorfoseia, assumindo traços contemporâneos. 

“Sofrer”

O desfecho de “Faroeste caboclo” indica que a cidade moderna está tão desfigurada e sem forma, como o ambiente rural de onde saiu João de Santo Cristo. A violência brota do nada. O diabo ou seu espírito está no meio da rua, encarnado agora no personagem Jeremias e também no protagonista da canção. No filme clássico de Glauber Rocha, o duelo final ocorreu entre Antônio das Mortes e Corisco, tendo um cantador ao fundo na trilha sonora: “Esse mundo anda errado/ Que a terra é do homem/ Não é de Deus nem do Diabo”. A culpa seria de Deus ou do Diabo?

Nos versos finais, Renato Russo canta que “João não conseguiu o que queria/ Quando veio pra Brasília com o diabo ter”. O diabo já estava naquela cidadezinha no sertão e dá as caras no Distrito Federal da virada dos anos 1970 para os 1980. Certeza é que não existe deus ou diabo, mas apenas seres humanos.

Aos berros e com guitarras distorcidas a mil, a canção termina com a palavra “sofrer”. É uma expressão que ecoa ao longo de toda a música e, para muitos, condensa o sentimento contemporâneo da vida. Ressalte-se que isso tudo foi exposto por um jovem músico no ano de 1979, quando o Brasil entrou de vez no processo de abertura política e imaginou que iria sepultar de vez a ditadura militar. Mal desconfiava Renato Russo que o seu épico-sertanejo poderia ser uma história do Brasil na terceira década do século 21.