Uma mulher bonita, fina, rica, com uma posição respeitável na sociedade conservadora da Inglaterra logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quadra decisiva para o desenvolvimento da indústria em todo o planeta, se deixa seduzir não pelo jardineiro viril, doce e, pasmem, leitor de James Joyce (1882-1941) que trabalha para o marido, mas por tudo o que aquele homem encerrava de mágico e de simples para ela, aprisionada num casamento infausto, ainda que ninguém tivesse culpa. “O Amante de Lady Chatterley” é um conto de amor, mas é igualmente um tratado acerca do poder do ódio, que também se vale do amor para vicejar, em silêncio, sem alarde, sufocando tudo a sua volta num movimento de delicadeza absoluta, à luz de um balé maldito. Assenhoreando-se da pena do britânico D. H. Lawrence (1885-1930), a francesa Laure de Clermont-Tonnerre verte para a tela uma das histórias mais liricamente excitantes que a literatura universal já produziu, fazendo reviver o espírito de um tempo em que emoções — para o bem e particularmente para o mal — eram muito mais autênticas e muito mais devastadoras.
A lady Chatterley do título aparece muito mais do que seu furtivo consorte, o que por si só já quer dizer muito sobre a mensagem que Lawrence pretende transmitir. Os ventos da igualdade de gênero ainda levaram muito tempo para soprar, mesmo no libertário Velho Mundo, adepto do Estado mínimo, da economia de mercado, do capitalismo selvagem, do anarquismo, das utopias e distopias; entretanto, depreende-se da figura adelgaçada e muito pálida de Constance Reid uma mulher muito à frente de seu tempo. O roteiro de David Magee oculta, mas no romance, Lawrence destaca que sua anti-heroína já tivera algumas experiências amorosas no currículo quando passa a estreitar relações com o baronete Clifford Chatterley, de Matthew Duckett, por quem se apaixona e é correspondida. Pela maneira como Constance age ao longo da trama, pode-se inferir que tenha sido ela a investir sobre o pretendente, com quem não demora a se casar. Nessa adaptação, a sexta desde o trabalho de Marc Allégret (1900-1973), em 1955, Emma Corrin dá vida a uma senhora Chatterley docemente fescenina, quase pornográfica, um tanto a mais para os costumes de sua época, porém muito fiel à narrativa lawrenciana.
O romancista deixa a critério da audiência eventuais juízos de valor acerca de Connie, do mesmo jeito que logra o público quanto ao gênio de Clifford, decerto um homem fraco, cuja resolução de mudar-se com a esposa para a herdade meio sombria de Wragby, a algumas horas de Londres, concorre com seu desejo de retirar-se das vistas dos amigos e vizinhos depois que volta da guerra imóvel da cintura para baixo. Clermont-Tonnerre trabalha essa pulsão de morte — como já fizera em “Mustang – Alma Indomável” (2019) —, ajustando-a ao temperamento irrequieto de lady Chatterley, também paralisada, mas com o êxodo repentino e compulsório para Wragby. A magnífica formulação de Corrin faz com que o espectador se resigne à inação autodestrutiva da personagem, como a da fera que não pode mais contra a pertinácia um caçador diligente, que sabe-lhe todos os meneios, até ser chacoalhada com violência pelo encontro que há de sustentar o enredo doravante. E pouco antes, uma declaração do marido se encarrega de limar pela raiz todos os seus últimos anseios de um conúbio menos lutuoso.
Oliver Mellors, o guarda-caça de Wragby, entra na história, como J.Pinto Fernandes em “Quadrilha” (1930), o poeminha jocoso e cheio de delicadas revelações do sábio Drummond, com a diferença de que Mellors se reconhece um estranho naquele ninho. Mais uma vez, Connie recusa-se a acatar o que o destino lhe guarda e começa a frequentar o chalé do subalterno, mais e mais insinuante. Jack O’Connell rivaliza com Corrin pelo posto de personagem central, agarrando toda e qualquer oportunidade que a diretora lhe proporciona para tanto. Esse amante quase involuntário da senhora do patrão rouba a cena, não deixando margem para que se cogite um traço sequer de vilania em suas atitudes, enquanto aproveita para, dizendo o texto impecável de Lawrence, trazer-nos para mais perto de sua existência miserável. Mellors, a exemplo de lord Chatterley, também foi à guerra, voltou oficial, mas continua pobre e desvalido, sem ninguém que dele se compadeça, nem mesmo a esposa, uma tal Bertha, que se aproveita de sua ausência para preencher seus dias deitando-se com o maior número de homens que consegue — se fosse possível sugerir-se algum elo entre a conduta dessa mulher e a de Connie, o raciocínio já nasceria eivado de má-fé, como se pode comprovar pela ligação verdadeiramente anímica que o guarda-caça nutre por sua nova parceira, admirada que esse sujeito humilde, às vezes rude, tenha um apetite literário tão voraz e plural. Indiretamente, sua bibliofilia determina o começo da descida ao inferno que terá de amargar: Ned, o novo companheiro de Bertha vivido por Nicholas Bishop, invade a cabana e encontra “A Viagem” (1915), o primeiro romance de Virginia Woolf (1882-1941), com o nome de Connie na contracapa.
Até o desfecho, entre melancólico e solar, essas duas almas fustigadas pelo mais humano dos sentimentos — e pela maledicência de bocas diabólicas —, passam maus bocados, a agora ex-lady Chatterley num autoexílio em Veneza com a irmã Hilda, da ótima Faye Marsay, onde também é espinafrada por razões bastante evidentes, e Mellors num vilarejo escocês, recomeçando do zero, de novo. A fotografia em sal de prata e mercúrio de Benoît Delhomme ajuda quem assiste a “O Amante de Lady Chatterley” a esquecer a tristeza deles, mormente nas cenas edênicas, nada lascivas, dos dois corpos marmóreos em nudez frontal, amando-se na relva ou tomando banho de chuva, como duas crianças faunescas. A plenitude da ventura, em muitas circunstâncias, é mesmo só isso: um amor confuso, depois de mil revoluções contra esse adorável inimigo.
Filme: O Amante de Lady Chatterley
Direção: Laure de Clermont-Tonnerre
Ano: 2022
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10