Li “A Corneta”, de Leonora Carrington, e gostei. Na verdade, estamos diante de um legítimo representante do Surrealismo na Literatura. Parece a versão em prosa de um poema de Manoel de Barros. Sem dúvida alguma, o livro foi pensado para ser assim, gradativamente imerso em um universo onírico. “A Corneta” conta a história de Marian Leatherby uma idosa que, aos noventa e dois anos, se vê obrigada, pela nora e o filho, a morar em um asilo. O mais curioso é que exceto pelo fato de escutar muito mal, não ter dentes e o esqueleto um pouco torto, Marian parece ter mente e disposição de uma jovem. Inclusive é extrovertida e, até certo ponto, ingênua.
Leonora Carrington escolhe a Literatura psicodélica para abordar o feminismo de forma profunda e intensa, ao mesmo tempo em que critica a sociedade patriarcal em que vive. Dotada de uma personalidade excêntrica preponderante, a protagonista, após ganhar uma corneta auditiva de sua melhora amiga, Carmella, passa a ouvir e distinguir nos sons as intenções das pessoas que a cercam. No asilo, uma instituição de propósito duvidoso, onde uma filosofia confusa e superficial é praticada, com o sentido de atribuir tarefas e elevação espiritual às senhoras idosas internas, vemos todos tipo de construção exótica e ambientes obscuros que guardam segredos milenares.
Da amizade com as internas — cada uma mais peculiar que a outra — surgem descobertas surreais e universos inusitados. Marian conhece a Abadessa Doña Rosalinda Alvarez Cruz della Cueva, que tem sua história contada por um clérigo, em um livrinho misterioso, cuidadosamente criado, confidenciado a Marian como um convite para sua iniciação em uma confraria muito particular, composta pelas idosas do Asilo. Entre os ídolos das confreiras estão a Abadessa e a Rainha abelha. Episódico, o livro trata de vários mistérios que compõem a relação entre as mulheres da instituição, seus opressores, o casal Doutor e Senhora Gambit, suas fiéis cumplices, uma delas tida como detentora de uma força sobrenatural divina, e um conjunto de criaturas fantásticas.
O universo nebuloso, distorcido, se assemelha sempre a um sonho. Nele o tema central é a potência feminina e a subversão das normas vigentes. Uma vez conhecedoras de suas necessidades e de sua força, as mulheres da instituição, abandonadas à margem por “maridos dominadores e rabugentos” e “filhos e filhas, que não apenas não nos amavam mais como nos consideravam um fardo e motivo de constrangimento e vergonha”, tornam-se ordenadoras de suas vidas e de seus destinos com a autonomia que lhes é intrínseca. Assim, concluem: “Embora a liberdade tenha nos chegado um pouco tarde, não temos intenção de abandoná-la outra vez”.
“A Corneta” é uma fantasia política e crítica, cheia de mitologia, ornada com Literatura esotérica, irreverente e engraçada. É um livro que representa uma análise minuciosa da sociedade de sua época. O mundo, absolutamente absurdo, criado por Leonora, tem regras para existir. Às vezes esbarra na fronteira do razoável, mas funciona. Sobretudo para inserir a ideia de que a idade não limita a ideia. Ali estão heroínas subversivas, marginais, com iniciativa e capazes de subjugar a ordem vigente.
Livro: A Corneta
Autor: Leonora Carrington
Tradução: Fabiane Secches
Páginas: 216 páginas
Editora: Alfaguara
Nota: 8,5/10