Naquela hora intermediária entre o sono e a vigília, aquele instante em que ainda não dormimos, mas também já não estamos acordados, você sabe, aquele cadinho de tempo em que deságuam sobre nós pencas de palavras e imagens, sons, lembranças e sentimentos, pousou na porta do meu primeiro sonho da noite uma canção.
Generosa e festeira, ela trouxe consigo outras canções suas irmãs e parentes e vizinhas. E ficaram ali enfeitando minha noite de mãos dadas, girando em ciranda. Tinha cururu e baião, samba de roda e bolero, embolada, ijexá e outras belezas passeando dentro de mim feito uma lembrança bonita, falando de coisas da terra, dos rios e dos índios, da mata e dos bichos, da fé dos caipiras, da beleza do tempo e da vida.
Fizeram festa em minha noite triste, renovaram minha alegria e se foram de manhãzinha, o sol nascendo lá fora e a beleza me quentando aqui dentro. Antes, contou-me uma delas que vivem todas em comunidade num disco chamado “Verdeamarela”, de uma moça de nome Iara Ferreira.
Que arte bonita a dela, Meu Deus! Iara faz música com substância de sonho. Poesia cantada e esculpida no ferro duro de cada dia. Beleza forjada no exercício da alegria. Som e fúria da vida transformados em canções de amor à natureza e sua gente, seus bichos e suas plantas.
Querendo saber mais de seu ofício, pesquisei por aí e encontrei quase nada. Decidi guardar comigo o susto bobo de quem tropeça numa raiz de árvore, escorrega sem cair, sente alívio por se manter em pé. E agradece por estar vivo e merecer sonhar.
“Verdeamarela” tem nove canções com som de água, de vento, de terra que a gente pisa descalço, de chama crepitando na fogueira, de vozes de festa ouvidas de longe no espaço e no tempo. De Deus nos soprando bençãos e graças, da Ave Maria nos cobrindo de amor em sua hora à tardinha, dos anjos e santos e guias reunidos em festa no céu, misteriosa fonte da vida e da arte.
Ouvindo Iara, penso comigo nas canções que atravessam a mera escuta da gente. As canções que nos tocam em outros cantos de nós mesmos, que nos pegam pela mão e nos fazem ouvir, sentir e amar tudo aquilo que seu autor ouviu, sentiu e amou. Que viagem linda, Meu Deus!
Sua música desperta em nós sentimentos bonitos, resgata com simplicidade e afeição o nosso jeito esquecido de sentir carinho uns pelos outros.
De suas canções que enfeitaram meu sonho, umas têm cheiro de manhãzinha e silêncio, de céu azul e sol alaranjado. Outras ressoam em nós como o vozerio da hora mais movimentada em uma reunião de pessoas queridas, quando todos chegaram e a felicidade se faz completa, pouco antes de se despedirem de novo e tudo virar saudade. Outras recriam as cores e os cheiros de uma tardinha comovida. Outras acendem em nós uma noite de caminhos sem fim.
Iara faz canções que recriam a vida e lhe dão um sentido novo. Música cheia de sol e de lua, de vento soprando os cabelos e as roupas em varais de antigas casas, de fogo esquentando comida em panelas simples, de terra batida por passos firmes. Música cheia de vida. Feitiçaria boa, pura, simples e bela. E põe beleza nisso!
Seu canto “verdeamarelou” minha vida, despertou de novo em mim um desejo honesto de compreender com ternura o mundo à minha volta. De empreender uma tentativa nova de entendimento do que me apavora e afasta.
Verdade é que artistas como Iara provocam em seus ouvintes, por menor que seja, uma intenção afetuosa. Rogo pra Deus que mantenha essa gente sob Sua luz e proteja sua vida e sua arte.
Alguém ainda há de empreender um estudo acadêmico sobre a afetividade musical despertada em nós pelas canções de gente como Iara Ferreira.
Naquela hora intermediária entre o sono e a vigília, ouvi seu disco “Verdeamarela” e gostei. Gostei muito. Rezo pra que você e todo mundo ouçam também. E também gostem. E também gostem muito.