Misturar temas indigestos e delicados como a vida dos moradores de rua e futebol, matéria eminentemente solar e prazenteira, ainda que nunca deixe de suscitar alguma tensão e, no pior dos cenários, degenere em bate-boca, quebra-quebra, pancadaria e morte — sobretudo entre gente que se orgulha de sua incivilidade — é um movimento arriscado, que tanto pode arrefecer a urgência de se lidar com o primeiro como edulcorar a necessidade de se estabelecer regras para o segundo quando soa o apito final. “Campeonato dos Sonhos”, crítica melodramática acerca da importância do esporte nas sociedades deste tresloucado século 21, o faz, e carregando nas tintas do politicamente incorreto, desafio que o sul-coreano Lee Byeong-heon tira de letra. Uma questão lamentável que passou a fazer parte da rotina do futebol mundo afora é submetida a um olhar cirúrgico no roteiro do diretor e Mohammed Abdullah, que aborda a violência nos estádios sob uma perspectiva original. Disso acaba nascendo uma história tocante e reveladora.
Ao fim de uma partida em que foram derrotados, o time de Yoon Hong-dae deixa o campo desolado, como se em dívida não com o torcedor, mas com seu próprio espírito. Concentrando-se nas expressões dos atores, Lee detalha essa sensação de morte adiada, comum não a jogadores de futebol quando saem fracassados, mas aos povos do Oriente, e Hong-dae sabe muito bem que falhou, só não quer ter de encarar os repórteres, alguns injustos e venais, pelo menos não nessa hora. O capitão vai se acostumando aos apupos, tenta desvencilhar-se da multidão que contém sua fúria bestial, ele mesmo trata de se valer de todo o seu autocontrole, mas quando ouve as insinuações maldosas de um jornalista, que aproveita para ofendê-lo, não consegue manter a fleuma. O que acontece em seguida custa-lhe a retirada da competição até que ela termine, e uma punição que soa-lhe como debique. Em paralelo a jogos que envolvem centenas de milhões de wons em patrocínio, comerciais de televisão, posts nas redes, aplicações na bolsa, ocorre também o Torneio Social Mundial, projeto sem finalidade lucrativa que visa a despertar no público geral a sensibilidade para a causa das pessoas que vivem na rua. É justamente a esse universo que Yoon deve se integrar, compulsoriamente, se quiser ter alguma chance de a carreira.
O diretor usa esse argumento para tocar fundo em preconceitos do espectador, aproveitando tudo o que seu protagonista tem a oferecer. Park Seo-joon encarna esse homem a princípio óbvio na pele de um ídolo acima do bem e do mal que desce do Olimpo com as próprias pernas e tenta apreender essa nova experiência do jeito mais pragmático, como seu último recurso para voltar ao topo. Lançando mão de trejeitos cuidadosamente estudados e de uma fala meio artificiosa, quiçá tentando impor a autoridade que não tem, Park confere a seu anti-herói a medida exata de vilania frágil e espontânea bondade, e talvez isso inspire na plateia a crença de que o existir seja um jogo que vale a pena ser jogado, com direito até a um gol de placa no amor, com Lee So Min, a mocinha interpretada por Lee Ji-eun, sustentando um estimulante contraponto com a arrogância porosa de Yoon.
Filme: Campeonato dos Sonhos
Direção: Lee Byeong-heon
Ano: 2023
Gênero: Drama/Comédia/Esporte
Nota: 8/10