Filme na Netflix vai mexer com suas emoções e fazer todos os corações sensíveis transbordarem Divulgação / Netflix

Filme na Netflix vai mexer com suas emoções e fazer todos os corações sensíveis transbordarem

Bollywood consegue ser a um só tempo inventiva, emotiva, não arreda um centímetro dos hábitos nativos — o que se converte num problema em muitos casos — e proporciona a quem se aventura a encarar seus filmes uma experiência restauradora, como se o mundo pudesse retroceder milênios, Eva não mordesse a maçã e a humanidade ainda tivesse jeito.

“Dhanak” (2015) é poesia pura, do começo ao fim, e boa poesia. Tomando por cenário o Rajastão, estado indiano na fronteira com o Paquistão, o roteiro de Kukunoor se derrama sobre gente humilde, miserável diante da opulência constrangedora de Hollywood, mas que não se intimida e sonha. É uma história comovente, piegas até, mas autêntica, que não imita ninguém — até porque não precisa —, e que em alguns momentos se permite cair gostosamente na dita breguice, mas com tanta inocência, com tanta graça, que faz dessa suposta breguice a brejeirice que brasileiros conhecemos tão bem e que prezamos tanto.

O desafio constante da vida se mostrou ainda mais injurioso para Pari e ainda mais para Chhotu. Sem os pais desde sempre, os irmãos vividos por Hetal Gada e Krrish Chhabria são crianças felizes. Talvez criança feliz seja um pleonasmo, mas nem Pari e muito menos seu irmão caçula se dão conta da desdita que os rodeia. Adotados por Dungaram e Gowri, o chacha e a chachi (um pronome de tratamento respeitoso e que encerra afeto, equivalente a “tio” e “tia” no Brasil), os personagens de Gada e Chhabria são inseparáveis, não porque se amem desesperadamente, mas por Chhotu ser cego desde os primeiros dias de vida. Pari se presta a entender o mundo para o irmão menor, a interpretá-lo, cedendo-lhe seus olhos e sua alma, literalmente tomando-o pela mão e o levando pelo mundo limitado que os cerca, definido pela vila em que moram, a escola e o mercado.

Como todas as crianças — e mais ainda, como todos os irmãos —, eles discutem, ressentem-se uma com o outro, trocam tapas, mas estão condenados a serem um só, Chhotu um apêndice de Pari, a depender de sua boa vontade para perca o mínimo possível do que se passa à sua volta. Fãs dos atores que a indústria cinematográfica local estimula o povo a cultuar, Pari e Chhotu admiram a carreira de  Shah Rukh Khan e Salman Khan, respectivamente, celebridades na Índia. Num cara ou coroa, brincam de exaltar os supostos poderes de seus ídolos, inventando as tramas de que só mesmo as crianças são capazes. A ranzinzice de Chhotu, cujo azar no jogo decerto deve ser costumeiro, não impede que deem asas à brincadeira juntos: por mais que a vida possa lhes ter sido extremamente perversa, eles renovam as esperanças a cada novo dia. É essa esperança, a propósito, que dá a eles a certeza de que podem colorir seu destino e encontrar uma maneira de se livrar da sina de passar o resto da vida sufocados num ambiente que os hostiliza. Magoados com a rejeição de Gowri e com o pouco caso de Dungaram, que leva os dias fumando narguilé, decidem fugir, se valendo da moeda a fim de resolver para quem pedirão ajuda, se para Shah Rukh Khan, o ídolo de Pari, ou Salman Khan, de quem Chhotu é admirador entusiasmado. A menina ganha, e a sorte está mesmo com ela, já que o ator está filmando a apenas trezentos quilômetros, em Jaisalmer, segundo lê no pôster de divulgação do longa. Os dois saem pelo mundo à procura do astro numa viagem que se mostra muito mais cheia de percalços do que poderiam supor, malgrado Pari a veja também como a oportunidade de cumprir sua promessa e fazer o irmão caçula apreciar o arco-íris, o dhanak do título, e à noite, antes que o garoto complete nove anos. Ou seja, ela tem apenas alguns dias.

Conforme avançam pelas profundezas áridas do Rajastão em busca de Shah Rukh Khan, o SRK, aflora em “Dhanak” um deserto de ressentimentos. Os irmãos, ainda mais desprotegidos, ainda menores, começam a pensar no porquê de terem vivido dessa forma, nas pretensas razões que teriam os deuses de tê-los feito passarem tantas provações, se não teria sido melhor que Chhotu, em vez de ter ficado cego, devido a uma desnutrição severa, responsabilidade da chachi Gowri, houvesse morrido. A melancolia proposta por Kukunoor é ressaltada pelo bege das areias das vastas áreas desabitadas do interior da Índia, captado pela fotografia de Chitranjan Das. Esse isolamento é absorvido à perfeição por Hetal Gada e Krrish Chhabria, em performances comoventes.

A saga de Pari e Chhotu não tem nada de especial, e por isso mesmo a atuação de Gada e Chhabria é de tamanha importância. Ambos são carismáticos o bastante para segurar seus personagens, disputando a atenção do público e mantendo a narrativa interessante, ainda que um pouco mais de ousadia não fizesse mal. Os diálogos são precisos, leves como a conversa de duas crianças do interior devem ser. A interação com os outros tipos que lhes surgem pelos caminho — um mais improvável e mesmo bizarro que o outro, como o peregrino americano Douglas Adams, de Chet Dixon; e Badrinath, o lunático que dirige um caminhão imaginário depois da morte da mulher e dos filhos num acidente rodoviário, característico de quase toda cidadezinha do globo, personagem de Suresh Menon —, que se juntam a eles para ajudá-los, encaminha a história para o desfecho feliz, de contos de fadas, mas com personagem dolorosamente reais, plenos dos tantos pesares que assolam os protagonistas desde tão cedo.

Superando o que a vida havia preparado para eles, Pari e Chhotu ratificam a vontade de inspirar o sonho, o lirismo, a beleza de Bollywood, que “Dhanak” incorpora tão bem. O amor, entre irmãos e entre estranhos, artigo cada vez mais escasso, é matéria-prima dessa história tão pura como transformadora, tão despretensiosa como nobre. Talvez o homem não seja um caso perdido.


Filme: Dhanak
Direção: Nagesh Kukunoor
Ano: 2015
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.