Milan Kundera (1929-2023) é um escritor poderoso, mas a fama, que não cultivava, parece tê-lo prejudicado de alguma maneira. Se tivesse se tornado um escritor cult, de nichos culturais, talvez a Academia Sueca tivesse lhe concedido o Prêmio Nobel de Literatura. “A Insustentável Leveza do Ser” (Nova Fronteira, 314 páginas, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca), um romance magnífico, o pôs na crista da onda. Ganhou dinheiro, o livro foi adaptado para o cinema, com sucesso. Mas talvez não lhe tenha dado “respeitabilidade”. Tornou-se quase uma espécie de Graham Greene tcheco, quer dizer, um autor de livros — romances e contos — de entretenimento. Na verdade, ao contrário de intelectuais franceses, apreciava a ideia de obras de divertissement. Um de seus mestres era o irlandês Laurence Sterne, autor de “Tristram Shandy” — que também mesmerizava Machado de Assis, o de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (que Philip Roth usou como inspiração para compor o romance “Indignação”). Outro, Denis Diderot, autor de “Jacques, o Fatalista”.
Morto, em Paris, aos 94 anos, Milan Kundera teve a sorte de ser bem editado no Brasil, primeiro pela Editora Nova Fronteira e, depois, pela Companhia das Letras. Seus romances, como “O Livro do Riso e do Esquecimento” (Nova Fronteira, 214 páginas, tradução de Teresa Bulhões) e “A Imortalidade” (Nova Fronteira, 339 páginas, tradução de Teresa Bulhões e Anna Lucia Moojen de Andrada), contos, como “Risíveis Amores” (Nova Fronteira, 300 páginas, tradução de Teresa Bulhões), e ensaios, como “A Arte do Romance” (Companhia das Letras, 153 páginas, tradução de Teresa Bulhões), são de alta qualidade. A impressão que tenho é que o escritor, pós-morte, vai se tornar “maior”. O que não quer dizer que, vivo, era “menor”.
O escritor americano Philip Roth, que admirava sua obra, o entrevistou em 1980 — há 43 anos (o Muro de Berlim caiu nove anos depois, em 1989, e a União Soviética foi para o espaço em 1991. Tais informações são cruciais para os leitores dos trechos da entrevista que serão expostos a seguir). A conversa entre os dois saiu no livro “Entre Nós — Um Escritor e Seus Colegas Falam de Trabalho” (Companhia das Letras, 172 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto). São 11 páginas (eu quase ia acrescentando “apenas”, mas a palavra tolhe a apreciação de uma conversa de primeira linha).
O diálogo com Philip Roth se deu após o autor de “O Teatro de Sabbath” ter lido uma tradução de “O Livro do Riso e do Esquecimento”. “Durante nossas conversas, Kundera falava esporadicamente em francês, mas na maior parte do tempo em tcheco, e sua mulher, Vera, atuava como intérprete.”
De cara, Philip Roth pergunta: “Você acha que a destruição do mundo vai acontecer em breve?” Kundera responde: “A sensação de que o mundo está caminhando rumo à destruição a passos largos é muito antiga. (…) Se um temor existe na mente humana há séculos, deve haver algo por trás dele”.
Sublinhando que a entrevista é de 1980, Milan Kundera diz que “os russos vão fazer tudo que for possível para dissolvê-la aos poucos na civilização deles”. (Na verdade, na época, eram, não necessariamente os russos, e sim os soviéticos. Mesmo tradutores qualificados cometem o engano.) O escritor está se referindo à Lituânia e chega a perguntar a Philip Roth: “Você sabia que no século 17 a Lituânia era uma nação europeia poderosa?” O autor de “A Brincadeira” assinala que os “ucranianos estão desaparecendo do mundo discretamente, sem que o mundo dê a menor atenção a isso”. Tempos depois, com a queda do comunismo, a Lituânia e a Ucrânia ressurgiram. Aliás, “renasceram” a partir de 1991, com a dissolução da União Soviética. Hoje, a Ucrânia está sob ataque da Rússia do presidente Vladimir Putin.
Philip Roth inquire se “o destino da Europa Oriental e o da Europa Ocidental não são radicalmente diferentes”. O autor de “Testamentos Traídos” sugere que sim: “Como conceito de história cultural, Europa Oriental é a Rússia, com uma história muito específica, ancorada no mundo bizantino. A Boêmia, a Polônia, a Hungria, tal como a Áustria, nunca fizeram parte da Europa Oriental”. Tais nações integram a “grande aventura da civilização ocidental, passando pelo período gótico, pelo Renascimento, pela Reforma — movimento que teve origem exatamente nessa região”.
Milan Kundera frisa que “foi… na Europa Central que a cultura moderna encontrou seus impulsos mais fortes: psicanálise, estruturalismo, dodecafonismo, a música de Bartók, a nova estética do romance de Kafka e Musil. Quando, no pós-guerra, a civilização russa anexou a Europa Central (ou ao menos a maior parte dela), a cultura ocidental perdeu seu centro de gravidade vital. Foi esse o evento mais importante na história do Ocidente em nosso século”.
“Como é que você se sente como imigrante?”, quer saber Philip Roth. “Para um escritor, a experiência de viver em vários países é uma tremenda vantagem. A gente só pode compreender o mundo depois que o vê de vários ângulos”, diz Milan Kundera.
O autor de “A Arte do Romance” (Nova Fronteira, 145 páginas, tradução de Teresa Bulhões) diz que “O Livro do Riso e do Esquecimento”, escrito na França, “se desenvolve num espaço geográfico especial: os eventos que transcorrem em Praga são vistos pelo ângulo da Europa Ocidental, e as coisas que ocorrem na França são encaradas pelos olhos de Praga. Trata-se de um encontro de dois mundos”.
Paixão por Rabelais e Diderot
Depois do noveau roman, quiçá um filho tipicamente francês de James Joyce — a França está sempre copiando alguma arte alheia, mas com forte sotaque local, para parecer original —, o país de Stendhal e Flaubert agora aposta numa espécie de “literatura-escarro” ou “sarjeta-do-sexo”, à Michel Houellebecq (não se está sugerindo que sua prosa seja ruim — só constatando que a temática é mais forte do que a literatura). Não sei se Milan Kundera leu Houellebecq ou Emannuel Carrère, mas seu universo literário, pelo que disse a Philip Roth e pelo que escreveu nos seus ensaios, era outro, bem outro. A Philip Roth, ele disse que gostava “muitíssimo da cultura francesa, e devo muito a ela”.
“Rabelais [autor de “Pantagruel e Gargantua”, Editora 34, 448 páginas, tradução de Guilherme Gontijo Flores] é, de todos os escritores, o que mais amo. E Diderot. Adoro ‘Jacques, o Fatalista, e Seu Amo’ [Nova Alexandria, 256 páginas, tradução de Magnolia Costa Santos] tanto quanto adoro Laurence Sterne [autor de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, Companhia das Letras, 768 páginas, tradução de José Paulo Paes]. Eles foram os maiores experimentadores formais de toda a história do romance. E os experimentos deles foram, digamos, divertidos, cheios de alegria e júbilo, coisas que desapareceram da literatura francesa e sem as quais tudo na arte perde o significado”, assinala Milan Kundera.
“Sterne e Diderot viam o romance como um grande jogo. Eles descobriram o humor da forma romanesca. Quando ouço pessoas argumentando a sério que o romance esgotou suas possibilidades, o que sinto é exatamente o contrário: no decorrer da sua história, o romance deixou de lado muitas possibilidades. Há impulsos para o desenvolvimento do romance ocultos em Sterne e Diderot que não foram explorados por nenhum sucessor”, anota o crítico Milan Kundera. Faltou a Philip Roth indagar quais são tais “impulsos”. Será que James Joyce, que não é citado na entrevista, não seria um continuador da tradição de Sterne e Diderot? (Noutra entrevista o autor menciona sua paixão pelos escritores austríacos Robert Musil e Hermann Broch, a respeito dos quais faz comentários pertinentes, inclusive sobre os “excessos” literários de ambos.)
O poder sintético do romance
“O Livro do Riso e do Esquecimento” é ou não um romance?, quer saber Philip Roth. “É mesmo um romance. (…) A forma romanesca contém uma liberdade enorme. É um erro encarar determinada estrutura estereotipada como a essência inviolável do romance”, pondera Milan Kundera.
Mas o que é o romance?, insiste Philip Roth. “Um romance é uma extensão longa de prosa sintética fundada no jogo de personagens inventados”, sumariza Milan Kundera. “Ensaio irônico, narrativa romanesca, fragmento autobiográfico, fato histórico, rasgo de fantasia — o poder sintético do romance é capaz de combinar tudo num todo unificado, tal como as vozes da música polifônica. A unidade do livro não precisa se fundar no enredo, mas pode ser dada pelo tema. No meu livro mais recente, temos dois temas: o riso e o esquecimento.”
O stalinismo fez Milan Kundera entender o que era o humor. “Sempre consegui reconhecer quem não era stalinista, uma pessoa de quem eu não precisava ter medo, pelo modo como ela sorria. O senso de humor era um sinal de reconhecimento em que se podia confiar. Desde então, tenho pavor de um mundo que está perdendo o senso de humor”. Ressalte-se que a entrevista foi concedida muito antes do surgimento do rancor ignorante destilado nas redes sociais.
Na opinião de Milan Kundera, o homem usa o riso “para exprimir duas atitudes metafísicas diferentes. Alguém deixa cair o chapéu em cima do caixão numa cova que acabou de ser cavada, e o enterro perde o sentido: nasce o riso. Um casal de namorados corre pelo prado, de mãos dadas, rindo. O riso deles não tem nada a ver com as piadas nem com o humor; é o riso sério de anjos que manifestam seu júbilo por existir”.
De acordo com Milan Kundera, “os dois tipos de riso fazem parte dos prazeres da vida, mas, quando o riso é levado ao extremo, ele também denota um apocalipse duplo: o riso entusiasmado dos anjos fanáticos, que têm tanta certeza do significado do mundo deles que estão dispostos a enforcar todo mundo que não compartilhe esse júbilo. E o outro riso (…) proclama que tudo perdeu o sentido” e “que até mesmo os enterros são ridículos. (…) A vida humana é limitada por esses dois abismos: o fanatismo de um lado, o ceticismo absoluto do outro”.
Stalinismo: o poeta e o verdugo
Num de seus livros, Milan Kundera pontua que “a era do terror stalinista foi o reinado do verdugo e do poeta”. “O totalitarismo é não apenas o inferno mas também o sonho do paraíso — o sonho antiquíssimo de um mundo onde todo mundo vive em harmonia, todos unidos por uma única vontade e uma única fé. (…) Se o totalitarismo não explorasse esses arquétipos, que vivem no mais profundo de cada um de nós e têm raízes em todas as religiões, ele jamais conseguiria atrair tanta gente.” Vale uma dica filosófica do Jornal Opção: o livro “Missa Negra”, do filósofo John Gray, que percebe, por assim dizer, o marxismo como uma religião laica e derivada tanto do Cristianismo quanto do Iluminismo e do Positivismo.
O escritor, que é um ensaísta poderoso, de formação filosófica sólida, postula que, “quando o sonho do paraíso começa a se transformar em realidade, porém, aqui e ali surgem pessoas que se transformam em obstáculos, e por isso os governantes do paraíso são obrigados a construir um pequeno gulag, ao lado do Éden. Com o passar do tempo esse gulag vai ficando cada vez maior e mais perfeito, enquanto o paraíso ao lado vai ficando menor e mais pobre”.
Eis um retrato sutil da grande tragédia do século 20 (ao lado do nazismo): o comunismo — que matou mais de 100 milhões de pessoas e, em nome de um futuro radioso, sacrificou a liberdade no presente. Diga-se que a tragédia não começou com Stálin, e sim com Lênin, um dos mais sólidos intelectuais do bolchevismo. Pode-se sugerir que o leninismo era o stalinismo engatilhado e que o stalinismo era o leninismo atirando.
Paul Éluard, segundo Milan Kundera, trocou o surrealismo pela “poesia do totalitarismo”. O bardo francês cantava a liberdade, a fraternidade, a paz e a justiça. Porém, “quando, em 1950, os governantes do paraíso condenaram um amigo de Éluard que vivia em Praga, o surrealista Závis Kalandra, a morrer na forca, Éluard suprimiu seus sentimentos pessoais de amizade em nome dos ideais suprapessoais e declarou em público que aprovava a execução de seu camarada. O verdugo matava enquanto o poeta cantava”.
Não apenas o poeta estava mesmerizado pelo canto, digamos paradisíaco — o futuro, que nunca chegou, seria melhor — do stalinismo. “Todo o período de terror stalinista foi uma época de delírio coletivo. (…) Aí está o xis do problema. As pessoas gostam de dizer: a Revolução é bela; é só o terror que decorre dela que é mau. Mas isso não verdade”, diz Milan Kundera.
“O mal já está presente na beleza, o inferno já está contido no sonho do paraíso, e se queremos compreender a essência do inferno, é necessário examinar a essência do paraíso em que ele tem origem. É muito fácil condenar os gulags, mas rejeitar a poesia totalitária que leva ao gulag passando pelo paraíso continua sendo tão difícil quanto sempre foi. Hoje em dia, em todo o mundo as pessoas rejeitam categoricamente a ideia do gulag, porém ainda se deixam ser hipnotizadas pela poesia totalitária e marcham rumo aos novos gulags ao som da mesma canção lírica cantada por Éluard no tempo em que ele pairava sobre Praga como o grande arcanjo da lira, enquanto a fumaça do cadáver de Kalandra subia ao céu, saindo da chaminé do crematório”, critica Milan Kundera.
Záviš Kalandra: escritor tcheco executado pelo governo stalinista da Tchecoslováquia | Foto: Reprodução
(Seria, de alguma maneira, Milan Kundera um Aleksandr Soljenítsin, autor de “O Arquipélago Gulag”, mais refinado, literário, distanciado e bem-humorado? É possível, mas sua crítica ao totalitarismo comunista é corrosiva. O que, por certo, desagradou parte da crítica literária, sobretudo a de esquerda, e, até, quem sabe, os acadêmicos que concedem o Prêmio Nobel de Literatura.)
Esquecimento: uma forma de morte
Depois do riso, Milan Kundera fala do esquecimento. “Esse é o grande problema privado do homem: a morte como perda do eu. Mas o que é esse eu? É o somatório de tudo daquilo que lembramos. Assim, o que nos apavora na morte não é a perda do futuro, e sim a perda do passado. O esquecimento é uma forma de morte que está sempre presente na vida. (…) O esquecimento é também o grande problema da política. Quando uma grande potência quer privar um país pequeno de sua consciência nacional, ela utiliza o método do esquecimento organizado.”
O governo tcheco, imposto pela União Soviética, censurou os escritores ditos libertários, simplesmente proibindo a publicação de seus livros. “Duzentos escritores tchecos foram proibidos, entre eles Franz Kafka [morreu em 1924]. (…) Uma nação que perde a consciência de seu passado acaba por perder a identidade.” (Hoje, a Rússia de Putin quer destruir a consciência dos ucranianos. E até está matando muitos deles.)
Milan Kundera diz a Philip Roth (que, por sinal, se inspirou em “A Metamorfose” do tcheco Kafka para escrever a novela “O Seio”) que é avesso à alegoria, ou seja, “uma história inventada pelo autor com o fim de ilustrar uma tese”.
“Os eventos — sejam realistas, sejam imaginários — devem ser significativos por si próprios, e o leitor deve ser seduzido, de modo ingênuo, pelo poder e a poesia desses eventos”, afirma Milan Kundera.
Retomando “O Livro do Riso e do Esquecimento”, Milan Kundera esclarece que “o evento básico do livro é a história do totalitarismo, que rouba a memória das pessoas e desse modo as transforma numa nação de crianças. Todos os totalitarismos fazem isso. E talvez toda a nossa era técnica faça isso, com seu culto ao futuro, da juventude e da infância, sua indiferença ao passado, sua desconfiança em relação ao pensamento”.
A literatura de Milan Kundera encontra “sua resolução numa grande cena de” sexo, uma cena erótica, avalia Philip Roth. Milan Kundera concorda: “Você tem razão quando diz que em mim tudo termina numa grande cena erótica. Tenho a impressão de que uma cena de amor físico gera uma luz extremamente nítida que revela de súbito a essência dos personagens e resume a situação da vida deles. (…) A cena erótica [Hugo faz amor com Tamina em “O Livro do Riso e do Esquecimento”] é o foco em que todos os temas da história convergem, e em que os segredos mais profundos se localizam”.
Philip Roth nota certo pessimismo no romance, mas Milan Kundera discorda: “Desconfio das palavras ‘pessimismo’ e ‘otimismo’. Um romance não afirma nada; ele busca e formula questões. (…) Eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas”.
“A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote [sobre o qual o escritor tem um ensaio excelente] saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. É esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subsequente do romance. O romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. Nessa atitude há sabedoria e tolerância. Num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. O mundo totalitário — seja ele baseado em Marx, no Islã — é um mundo de respostas e não de perguntas. Nesse mundo o romance não tem lugar. (…) Em todo o mundo as pessoas hoje em dia preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a toda a tagarelice insensata das certezas humanas”.
Há outra entrevista de Milan Kundera, concedida a Christian Salmon, em 1983, e publicada no livro “As Entrevistas da Paris Review” (Companhia das Letras, 451 páginas, tradução de George Schlesinger).