O cinema deve muito a suas figuras malditas, em especial a seus homens solitários, infelizes misantropos que, desta ou daquela maneira, encarnam o melhor e o pior da humanidade, suas contradições, seu movimento dialético para a origem de todo o mal e a salvação. Denzel Washington personificou esse espírito como poucos ao longo de quarenta anos de carreira, e em “Chamas da Vingança”, Washington, a personificação mesma da versatilidade cênica, vai muito além do que lhe exige o diretor Tony Scott e oscila de uma languidez em que se deixa congelar para a ação sem freio, mas com método, confortável e seguro dos caminhos que escolhe para seu personagem. John W. Creasy (1956-2003), um ex-agente da CIA que não se sabe se enfrenta problemas com as garrafas por ter sido defenestrado do posto ou se perdeu o emprego por permitir que a bebida o tomasse, tem uma dose do Lincoln Rhyme de “O Colecionador de Ossos” (1999), dirigido por Phillip Noyce, do Whisp Whitaker de “O Voo” (2012), levado à tela por Robert Zemeckis, e até, esticando-se um tanto a corda, de Eli, o papel-título do filme dos irmãos Albert e Allen Hughes. Mas aqui, a exemplo do que se dá em todos os seus outros trabalhos, o protagonista esclarece que, como na vida, cada indivíduo é um universo a ser desbravado com a cautela necessária.
O roteiro de Brian Helgeland adapta o romance de A.J. Quinnell (1940-2005) carregando nas sequências de ação, depois de um prólogo em que a edição arrojada de Christian Wagner faz com que transeuntes que se deslocam por uma rua a caminho do trabalho virem um borrão que tenta se ajustar ao foco, talvez justificando o que é dito sobre a alarmante taxa de sequestros por hora na América Latina, e o desfecho trágico da maior parte dessas ocorrências. Washington imprime em Creasy o tamanho exato do desvario latente de seu anti-herói, mudando de endereço como se fugisse de seu inimigo figadal e perverso, o que é mesmo verdade: ele é o grande antagonista de sua própria história, mas tem por consolo saber que, por mais improvável que pareça, pode ser também seu redentor. Justamente por esse motivo é que aceita a oferta de emprego de Samuel Ramos, o industrial meio suspeito vivido por Marc Anthony, e passa a servir como guarda-costas de Lupita, a filha de Ramos e Lisa, de Radha Mitchell. Scott elabora bem o manjadíssimo argumento do brucutu desalentado, inabalável em sua fé na completa inutilidade do ser humano, que se afeiçoa a uma menina doce, compassiva, como se um anjo mandado de outra dimensão para resgatá-lo, ideia de que se vale Dostoiévski em “O Sonho de um Homem Ridículo” (1877). O diretor exibe igual competência nesse ponto específico da narrativa, quando Dakota Fanning, aos dez anos, mas já uma atriz com excelente noção de seu ofício, troca de lugar com Washington e já não se pode mais dizer com toda a certeza quem socorre quem.
Filme: Chamas da Vingança
Direção: Tony Scott
Ano: 2004
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10