Um dos depoimentos mais impressionantes sobre o desenvolvimento da bomba atômica está em uma entrevista de Oppenheimer onde ele diz: “Sabíamos que o mundo não seria mais o mesmo. Algumas pessoas riram. Algumas pessoas choraram. A maioria das pessoas ficou em silêncio. Eu me lembrei de algumas linhas do texto sagrado hindu Bhagavad-Gita. Vishnu tenta convencer o príncipe de que ele deveria cumprir o seu dever e para impressioná-lo, assume sua forma com múltiplos braços e diz: ‘Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos’”. Cinematográfico, na essência. O novo filme de Christopher Nolan, diretor de clássicos indiscutíveis como “O Grande Truque” e “O Cavaleiro das Trevas”, trata do metahumano, o físico J. Robert Oppenheimer. Distanciando-se da ideia do homem comum, Nolan, que compara o cientista ao mito grego de Prometeu, estuda e desenvolve um dos personagens mais interessantes e controversos da história moderna com um domínio único e primoroso da direção. O olhar atento de Nolan, busca encontrar em Oppenheimer algo de humano. Após elevá-lo quase à categoria de um deus, vem a desconstrução. Nolan, já provou, mais de uma vez, que é um dos diretores atuais mais relevantes. O premiado “Dunkirk” não nos deixa mentir.
O problema (para não dizer a virtude) é que Nolan parece estar fazendo o Batman novamente. Seu Oppenheimer, é inteligente e disciplinado, passou por uma iniciação dura, conquistou suas habilidades nas melhores academias do mundo. Começou na Universidade de Harvard, foi para Cambrigde e Göttingen, onde obteve treinamento completo com os melhores especialistas do mundo. Trabalhou em Berkeley. Resolveu problemas complexos de Física teórica com exímia competência. Um dos modelos físico-matemáticos mais relevantes da Física Atômica e Molecular foi desenvolvido por ele, em parceira com Max Born, a aproximação de Born-Oppenheimer. O filme deixa claro que seus superpoderes foram testados à exaustão e são capazes de magníficas proezas. No filme não há explicações físicas intrincadas ou equações generosamente distribuídas em quadros negros com longa duração ou em vários momentos. Roland Joffé faz isso melhor em “O Início do Fim”. Como em um filme de heróis, gostaríamos de vê-los usando seus superpoderes o máximo possível. Em “Oppenheimer” temos a construção do mito, as consequências da ação e o estabelecimento da ideia. Esta última, sendo a mais importante.
Em certo momento do filme, Oppenheimer, que após ser convidado pelo General Leslie Groves, responsável pelo projeto do desenvolvimento da primeira bomba de fissão nuclear, diz que para que os melhores cientistas aceitem o trabalho ele tem que construir uma cidade em Los Alamos. Ele concorda, de pronto! Esse é o tipo de coisa que só funciona nos EUA. Hollywood é a prova. Apenas para conceber um filme, vilas, bairros, cidades foram criados. É claro que, para o governo, esse preço, para se construir uma arma de destruição em massa, é irrisório.
“Oppenheimer” faz a mágica acontecer, como gosta Nolan e ele provou em “O Grande Truque”. O filme recria momentos fantásticos da história. Como o encontro de Oppenheimer com Einstein, uma espécie de oráculo, que na contramão do tema científico, lança respostas, em forma de metáforas, para os dilemas essenciais do protagonista. O ambiente bucólico, à margem de um lago, onírico, cheio de grama verde e natureza majestosa, cria os arquétipos místicos para tornar Einstein ainda maior do que é. É aquele ancião reservado, que tem as respostas para todas as perguntas, mas prefere instigar o interrogador para que ele descubra por si mesmo. O Einstein de Nolan é uma espécie de Alfred elevado à enésima potência. O velho sábio dá sua benção e sua lição. As coisas podem acontecer.
Não há herói sem vilão. Lewis Strauss é desenhado, o roteiro de Nolan deixa isso muito claro e patente, com as idiossincrasias dos vilões. É egocêntrico, intimidador, manipulador e gosta de poder, mas isso não se percebe de imediato. “Oppenheimer” conta a história da criação da bomba atômica, olhando de perto o seu criador, tudo gira em torno do cientista, mas faz isso a partir de uma espécie de tribunal inquisidor, com flashbacks, e torna-se, ao longo do desenvolvimento, uma história de mistério. Em algum momento, uma vez estabelecido o herói e seu dilema maior, sua dor pelas escolhas e as perdas ocasionadas por suas ações, o arqui-inimigo se revela. Sempre esteve por perto, fazendo o que sabe fazer melhor: dissimular. Ele tece sua teia e construí uma armadilha complexa, inescrupulosa. Ele é o coringa.
“Oppenheimer” será um dos melhores filmes do ano. Aposta com ganho evidente. Indicações óbvias para Oscar serão: melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor ator coadjuvante, melhor atriz e melhor atriz coadjuvante. Fora as categorias técnicas. A trilha sonora é uma das melhores dos filmes do Diretor e a fotografia é impecável. O triunfo da qualidade técnica somado ao ótimo roteiro. Particularmente, Nolan tem habilidade para dirigir atores. Verdade que o elenco é composto pelos mais talentosos atores de Hollywood, mas a maioria está especialmente inspirada, sobretudo Cillian Murphy, provavelmente seu melhor papel até hoje. É impressionante! O ator é o centro de tudo, sua performance é irretocável. Robert Downey Jr., quase irreconhecível, equilibra a balança numa atuação brilhante.
Em “Oppenheimer” não há vencedores. Não há o bem e o mal. Há uma ideia e um mito. Assim como em “O Cavaleiro das Trevas”, rege o caos na determinação das sentenças, para ambos herói e vilão. Aqui, os títulos são apenas rótulos para engendrar a trama e o drama. Todos os elementos citados, em “Oppenheimer”, funcionam. E funcionam muito bem. Nolan tenta humanizar o herói, mas não consegue. Talvez seja exatamente essa a intenção. Ainda o vemos, depois de grande parte da projeção, como um ser maior do que aqueles que o cercam. Impossível ser de outra maneira. A mente brilhante de Oppenheimer foi capaz de produzir, com organização e disciplina, uma das armas mais poderosas da história. Poderia ser ele o vilão, mas na sua intenção está o altruísmo acima de tudo. O bem maior. Essas são as consequências de criar um herói complexo, com motivações sinceras e uma fortaleza técnica capaz de exímias proezas.
Filme: Oppenheimer
Direção: Christopher Nolan
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10