Eu seguia a reboque para o trabalho, depois de outra noite mal dormida, aos trancos e barrancos, ouvindo pelo rádio canções do século passado, pensando que merda estou mesmo ficando velho, dirigindo um carro de segunda-mão, saltitando em quebra-molas, amolecendo, amolecendo, amolecendo, quando me deparei com uma cena ao mesmo tempo hilária e cativante. Explico.
Na calçada, do outro lado da rua, um casal de vira-latas com cara de paisagem padecia atrelado pelos genitais após uma cópula ligeira, sem compromisso emocional nem financeiro. Os totós aguardavam, pacientemente, pelo fim do edema fisiológico para despregar um do outro e seguir cada qual o seu caminho. Aparentemente, o processo de perpetuação da espécie tinha sido concluído com sucesso, estando quase tudo muito bem encaminhado.
A poucos metros dos divertidos pulguentos, um jovem casal de namorados se atracava num beijo prolongado, intenso, como se fossem noviciados em paixão, como se um pretendesse penetrar no corpo do outro pelos poros da pele, numa espécie de osmose afetiva, se é que me entendem — sei que já beijaram assim, com deslavado desejo, algum dia em suas vidas.
Eu estava aziago. Sentia ainda o desagradável sabor da pasta de dentes na minha boca. A cena inusitada dos mancebos entrelaçados àquela hora do dia me remeteu a uma icônica fotografia de 1945 — mais uma vez, outra maldita reminiscência do século passado — na qual um casal fora clicado beijando-se fervorosamente em plena Times Square, num contorcionismo corporal que, só de olhar, só de pensar, fazia-me sentir espasmos musculares na região lombar — ali, na junção da vértebra L-5 com a S-1, sei que vocês sabem muito bem do que é que eu estou falando, pois se trata de uma questão de ciático.
Recentemente, ao pesquisar sobre os protagonistas da histórica foto registrada na cidade de NYC, fiquei sabendo que o casal sequer se conhecia. A moça — que, pelos trajes brancos, parecia ser uma enfermeira, era, na verdade, uma assistente de dentista — fora pega de surpresa, sem prévio consentimento, por um marinheiro corpulento, ébrio, eufórico e atrevido que comemorava o fim da Segunda Guerra Mundial e o fato de não ter mais que embarcar pelo Pacífico para combater o inimigo.
O sujeito decidiu comemorar o fim da guerra tascando um beijo roubado na simpática moçoila. Analisando a foto com cuidado, é possível depreender que, de fato, a mulher não parecia nada confortável, pois, mantinha as mãos cerradas, sem tocar no corpo do rapaz, sem retribuir afeição. Se o fato acontecesse nos dias atuais, o intrépido beijoqueiro certamente seria denunciado por abuso e por importunação. A grande guerra acabou; as más atitudes, não.
Eram sete horas da matina — eu precisava de um café, eu precisava de um sábado, eu precisava de um milhão na minha conta corrente — o trânsito e as minhas narinas já estavam bastante congestionados, como era de costume no inverno. Quando menos se esperava — aludindo, ainda que minimamente à famosíssima foto de um casal se beijando no meio da rua, descrita anteriormente — uma cena de amor se descortinava aos olhos de todos, em pleno logradouro público, como se não houvesse gerente, como se não houvesse relógio de ponto, como se o tempo tivesse estancado. Na concepção dos adolescentes, imagino que a sensação fosse exatamente essa, de que o mundo parasse em prol daquele romance.
Os automóveis passavam pelo casal grudado que nem chiclete, que se esbaldava num ósculo fogoso — ósculo é um substantivo dos mais horrorosos — ininterrupto, demonstrando os plenos pulmões da juventude e uma enorme empolgação na hora do rush. Um motociclista enxerido levantou a viseira do capacete e gritou uma espécie de grosseria chistosa que fez a mocinha corar, interromper o beijo e sorrir acabrunhada. Mesmo à distância, deu pra perceber que ela tinha aparelho nos dentes. O rapazola fez que não era com ele, abarcou-a novamente pela cintura, deu um giro de vinte graus ao redor do próprio eixo vertebral, sem desequilibrar e tascou nela outro beijo descongestionante, grudando os seus lábios nos lábios dela, como se cuspe fosse cola. Enquanto isso, alheios aos eflúvios hormonais da puberdade, um grupelho de moleques endiabrados com mochilas escolares dependuradas nas costas começou a troçar dos dogues, atirando-lhes pedras, só pra judiar, só pra variar, só pra se divertir. Os bichinhos cambaleavam de um lado para o outro, sem poder de reação.
O casal de adolescentes agia de forma terrivelmente livre, a despeito do caos urbano e dos motoqueiros enxeridos que vigiam ao seu redor. Podiam desatrelar as bocas no momento que bem entendessem. Podiam continuar se beijando até secar o bagaço, até se saciar de saliva, até ensopar as roupas de baixo, até a garota admitir — as mulheres, sempre as mulheres sendo mais sensatas do que os homens — que já era chegada a hora de dar uma pausa nas câimbras pélvicas e cada qual seguir o seu caminho, até mais tarde, quem sabe, com certeza, até o próximo encontro.
Os vira-latas permaneciam desconsolados, a arfar pelas suas longas línguas róseas que pendiam pelas mandíbulas. O sinal abriu. Àquela altura da manhã, a maioria dos motoristas e dos transeuntes estava com o coração absolutamente trancado para sentimentalismos. Ninguém se comovia com nada, nem com um homem de cabeça amassada que pedia trocados no semáforo. Quase tudo era motivo de correria, de pressa e de boçalidade. Os carros aceleravam irritados. O jovem casal de amantes não podia ter escolhido melhor horário para desatravancar o meu dia. Um dia, eu já beijei assim — pensei, melancólico como uma ponte prestes a pular de um sujeito.
Engatei a primeira marcha. Pelo espelho retrovisor, comovia-me também o olhar tragicômico dos desajeitados vira-latas presos ainda pela tumefação das genitálias. Um moleque em idade escolar tinha arrancado uma bombinha de dentro da mochila e se preparava para acender o pavio para despejar artilharia sobre os bichinhos, sob os olhares anuentes, eufóricos e transbordantes de expectativa de uma cambada de pirralhos que, certamente, chegaria atrasada ao colégio naquela manhã de quarta-feira.