As psicopatias, os males da alma, foram tornando-se uma presença quase banal na vida do homem no decorrer dos anos, e conforme a marcha da loucura nossa de cada dia avançava, a medicina tentava dar uma resposta à altura, surgindo em paralelo os inúmeros tratamentos alternativos que, se não resolvem, amenizam o peso da cruz. Vícios, como mostra o honconguês Pang Ho-Cheung em “Love in a Puff”, são também, ninguém em pleno domínio de suas faculdades mentais nega, um alívio torto para distúrbios das mais inimagináveis naturezas, mas durante este louco século 21, a tolerância aos aditivos tem experimentado o gosto bastante ácido de uma vigilância que não parece exatamente a preocupação desinteressada de governos por seus cidadãos. Uma rotina pautada pelo consumo excessivo de álcool, gorduras trans, frituras, açúcar refinado, cafeína, sal, o tabagismo, o uso de outras drogas, tudo isso, além do famigerado estresse, contribuem para minar a saúde, a mental, inclusive. Mas tanta paranoia — que já é mais um sintoma de que alguma coisa está fora da ordem nas relações coletivas — não desencadearia mais prejuízo que vantagem, mais morbo do que cura?
Em vigor desde 1º de janeiro de 2007, um novo decreto sancionado pela divisão de Saúde Pública de Hong Kong praticamente bane o cigarro da vida social do cidadão comum. Fumantes passam a ter de se refugiar sob marquises cada vez mais estreitas, imprensando-se em volta de lixeiras a fim de evitar inconvenientes multas por deixar as cinzas sujarem a calçada, num ritual de humilhante solidariedade a que já se acostumaram. O roteiro de Pang e Heiward Mak começa de um jeito nada óbvio, encenando uma das tantas histórias que esses novos párias contam, para, afinal, deter-se na agonia daqueles infelizes, fuzilados pelo olhar de desaprovação e asco dos ditos normais. Num dia chuvoso, Jimmy Cheung e Cherie trocam inconfidências entre uma e outra golfada de alcatrão e nicotina, e não se poderia esperar nada além de um romance, embora nos moldes de um caso com regras ainda mais draconianas que as inventadas por governos para cercear as liberdades individuais. Além de tabagistas inveterados e ocupantes de postos de comandos nas megacorporações em que trabalham, os personagens de Shawn Yue e Miriam Chin Wah Yeung não parecem ter muito pontos de contato mais, e como nas baladinhas saborosamente piegas dos conjuntos de rock de tempos imemoriais, esse tende a ser o passo inaugural de uma longa jornada até o altar — ou não.
Não se pode esperar reviravoltas mirabolantes de “Love in a Puff”, e esse é o seu trunfo. As conversas impublicáveis em que os amigos de Jimmy revelam os episódios de adultério velado (ou nem tanto), seus ou das respectivas parceiras, são fesceninos, mas não chegam a ser engraçados, e a volta à sátira política, quando o diretor alude a um súbito aumento de 50% nos impostos que incidem sobre a produção e o comércio de tabaco votado pelo Conselho Legislativo de Hong Kong em 25 de fevereiro de 2009 — depois de um agradável passeio pelas vidas atormentadas, mas febris, dos tipos que rodeiam-no a ele e a Cherie — não surte efeito, a não ser, claro, se tomado pela perspectiva demasiado humana, com o anticasal em busca de quantos maços de Lucky Strike mentolado pudessem encontrar antes que esta outra ingerência em sua privacidade vigesse. Se o politicamente incorreto não consegue salvar o mundo, presta-se, ao menos, para que não nos esqueçamos de nossa frágil natureza.
Filme: Love in a Puff
Direção: Pang Ho-Cheung
Ano: 2010
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10