Repare bem. Nós estamos mais distantes. Em algum momento perdemos a mão e nos largamos no caminho. Deixamos de nos importar uns com os outros, esquecemos as nossas datas de aniversário, nossas lembranças comuns, nossos planos em conjunto. Os destinos que sonhamos juntos, as esperanças compartilhadas, os medos e as dores que enfrentávamos em grupo, nossos cuidados retribuídos, nossos amores correspondidos. Nossa comida repartida e nossa vida conjugada feito verbos em todos os tempos, de todos os modos. Sumiu tudo no vão do sofá.
Quem sabe seja a fragilidade das relações de hoje, a fraqueza dos encontros circunstanciais. Talvez seja essa brutal escassez de recursos que nos transforma em débeis sobreviventes obrigados a cuidar do próprio umbigo, indiferentes ao outro e a tudo o que podemos ser juntos.
Repare. Há buracos enormes no caminho. Há trincheiras entre nós. Estamos divididos entre lá e cá. Nossas afinidades e parecenças desapareceram na erosão dos afetos, no sumiço das ternuras. Entre nós tudo virou lonjuras e estranhamentos.
Juro que eu dava o que tenho para nos pôr juntos de novo. Não bastaria. Mas eu me permito sonhar que se você ouvir uma só canção, uma entre as onze canções de alegria e beleza que eu ouvi no primeiro disco de um rapaz chamado Martins, você há de entender o que eu digo e de pensar no assunto.
Martins é um moço que tem nome de santo, Thiago Emanoel Martins do Nascimento, e o ofício divino de compor belezas que nos redimem e reaproximam.
Nascido no Recife assim como o Mangue Beat, ele é um fruto bonito de outro movimento, o chamado Reverbo, um coletivo criado por Juliano Holanda e Mery Lemos que cultivou artistas incríveis de todo o estado do Pernambuco.
Martins faz canções que estendem a mão e acolhem. Tudo em seu ofício revela uma relação vital e profunda com a cultura popular nordestina, os tocadores de viola e os emboladores de coco, os repentistas e rabequeiros, os pensadores e os pescadores, os cordelistas e os artesãos. Mas também com a música popular brasileira, com o rock, com as grandes cidades e suas ruas, sua arquitetura e sua gente. Tudo na música de Martins nos reúne em torno de sua beleza, feito bichos irmãos atraídos pelo fogo.
Em uma entrevista recente, ele disse que oitenta por cento de suas composições vêm de sua relação com a cultura popular. Achei bonito ele pensar em um número redondo. Oitenta! Pensei aqui comigo que os outros vinte por cento devem ter vindo das viagens de ônibus que ele fez aos dezoito anos de idade para aprender a tocar rabeca, de suas andanças pelo mundo tocando forró, de seu olhar sobre a vida, de seu jeito de ler o que lê, de ouvir o que ouve, de ver o que vê, de viver o que vive hoje, na maturidade de seus quase 33 anos.
E assim fazendo bonito o que sabe fazer, esse belo e profundo artista nos recoloca no rumo de nós mesmos, nos reencaminha, nos reúne, ouvintes encantados de suas canções, tocados por sua poesia, perdoados e refeitos de tanta distância e tanto desencontro, prontos para seguir juntos de novo. Eu me permito sonhar que se você ouvir as canções de Martins, você há de entender o que eu digo e de pensar no assunto.