Não tem homem que voa. Nem caminhão que explode confetes. Nem caverna do dragão. Não tem duende que dança polca, porco que come pérola, carro que conversa pelos virabrequins. Não tem um mundo paralelo, com todas as coisas acontecendo ao avesso, como um parto que sucede ao contrário, em que se nasce de volta para dentro. Não tem padre que tira o demônio, demônio que veste Prada, pessoa que fica invisível, Jesus que sobe na goiabeira — veloz e furioso. Não tem flamingo que canta, menina que vira sereia, monstro que peida na banheira, baleia que engole gente, gente que atira raios pelos dedos. Não tem castelo da bruxa, nem brecha na calota polar por onde escapam seres horrendos com as presas impregnadas de tabaco. Não tem boneco-de-pau querendo virar gente, gente querendo virar cachorro, cachorro querendo virar a esquina pilotando um Jaguar. Não tem piano que sente cócegas ao ser tocado. Não tem fada do dente. Nem mastodonte usando maiô. Nem super-herói que morre de medo e que ressuscita ao terceiro dia. Não tem milagre nenhum acontecendo enquanto estamos assistindo à TV.
“This is Us” é uma série televisiva norte-americana composta por seis longas temporadas que iniciaram em 2016 e se encerraram em 2022. Dan Fogelman, o seu idealizador, apostou no óbvio, ao conduzir o roteiro usando os dramas habituais do cidadão ordinário, que passa por perrengues financeiros, ansiedade, insegurança emocional, dilemas existencialistas e incontáveis distúrbios de relacionamento com amigos e parentes.
A história gira em torno da família Pearson, cujos pais — Jack e Rebecca —tem filhos trigêmeos, sendo que um deles morre durante o parto. A perda inesperada do terceiro gêmeo liga o botão de pânico e a falta do precioso bebê é “compensada” — na velocidade absurda da ficção — pela adoção relâmpago de outro recém-nascido que fora abandonado no Corpo de Bombeiros da cidade e levado para a mesma maternidade onde Rebecca tem o parto complicado. Ocorre que a família é branca e o bebê adotado, preto.
Aludindo a Nelson Rodrigues, “This is Us” retrata a vida como ela é. Os fatos fluem num vai-e-vem emocionante pela linha do tempo, alternando o passado, o presente e o futuro das personagens, compondo um emaranhado de acontecimentos que exige máxima atenção dos expectadores. Impossível conter o choro e evitar as comparações com os nossos próprios núcleos familiares, tão recheados de amor, de felicidade, mas, também, de tristezas, de decepções, de tragédias, de desavenças e de algum grau de ressentimento.
Não posso escrever muito além desse ponto, sem dar spoiler. Os dilemas da amorosa família Pearson — um amor que, de tão intenso, chega a provocar em mim inveja e gastura — permeiam incontáveis momentos de alegria com os duros dissabores da vida real: o alcoolismo, a drogadição, a deficiência física, as separações, a violência doméstica, a depressão, o desemprego, as discriminações racial e de gênero, dentre outras coisas.
Insisto: façam um favor a si mesmos e assistam a “This is Us”, um enlatado americano — tudo bem, que seja — tão brasileiro, tão cosmopolita, uma das produções mais tocantes — e úteis — dos últimos tempos. As personagens de “This is Us” convidam-nos à reflexão, a dar um tempo, a perdoar, acima de tudo, a nós mesmos. A despeito das aparências, somos imperfeitos e ponto. O fundamental consiste em não levar os percalços da vida tão a ferro e fogo. Termino a audiência deste seriado melhor do que entrei, mais convicto de que a vida da gente é bela, doida, bagunçada, permeada de altos e baixos — mais baixos do que altos — diga-se de passagem, entretanto, plenamente passível de ser vivida com mais leveza e mais humanismo.
As personagens carismáticas, adoráveis, sofridas e problemáticas de “This is Us” somos nós mesmos refletidos num imenso espelho. Ninguém escapa ileso. Porque são as imperfeições humanas que põem à prova o amor que sustenta a vida.