Feiticeiros da vida como ela é, mágicos personificam como ninguém a imagem do sonho recalcado de uma vida diferente, melhor, mais próspera — ou quiçá só menos tediosa —, que habita o inconsciente coletivo. Parábola sobre o quão imbricados estão entre si a arte, a religião e o expediente político, “O Ilusionista” exalta o valor do imaterial na existência humana, sempre plena de contradições. Sem esforço, essas figuras capturam a atenção do público, que não tarda a se entregar e, mesmerizado, fazer tudo o que lhe pede um anfitrião que abandona o sorriso fácil para se concentrar na expressão a um só tempo austera e gentil com que ludibria plateias ao redor do mundo, resistentes a princípio, mas pouco a pouco seduzidas, não obstante temam ficar nas mãos de alguém tão poderoso e pouco confiável — por mais breve que seja o número. Pelo tempo que durar o show, o espectador não se importa com nada mais que deixar-se absorver pela perícia daqueles truques, cuja arquitetura não conhece, nem quer conhecer. O que lhe interessa mesmo é a magia que domina o ambiente, vigorosa o bastante para desanuviar pensamentos aborrecidos, tristes, cheios das humanas preocupações comezinhas do dia a dia. Entretanto, por melhor que seja o artista, por baixo daquela fonte de arrebatamento e graça está um ser humano comum, feito os outros, que oculta na alma suas cartas mais preciosas. Neil Burger gira seu filme de modo a direcioná-lo à ironia mais e mais aguda sobre a farsa pela qual pautam-se as relações entre os homens, fazendo questão de insinuar que o coração das pessoas, de todas as pessoas — até mesmo o de um futuro rei — congela se não recebe sua medida de ilusão. A ciência, a medicina, as instituições e, por óbvio, a arte esmeram-se em seu propósito de burilar a natureza humana, mas a agonia predadora do homem por liderar; seu desejo patológico e imorredouro de autoafirmação; de subjugar quem quer que considere mais vulnerável; de impor sua visão de mundo custe o que custar, continuam muito mais fortes que a mais elaborada das boas intenções. A partir desse lado sombrio do ser humano que os bons mágicos trabalham é que conseguem domar um lobo que se devora a si mesmo e, assim, também libertam suas próprias feras.
Burger descreve uma fábula sobre o poder em suas variações mais sutis, o poder formal e aquele somente insinuado, mas igualmente dominante. Eduard Abramovicz, o prestidigitador do título, atende pelo nome de Eisenheim quando quer fazer com que seu talento nas artes ocultas seja apreciado por plateias em toda a Europa da virada do século 19 para o 20. O roteiro do diretor ancora-se no que Uhl, o inspetor-chefe de Viena interpretado por Paul Giamatti, narra em flashback. Inspirado num conto do romancista americano Steven Millhauser, ganhador do Pulitzer por “Martin Dressler — The Tale of A American Dreamer” (1996), sem edição em português, “O Ilusionista” se desdobra sobre o temperamento impulsivo de Eisenheim, tão perdidamente apaixonado que elabora um plano para viver seu amor pela duquesa Sophie von Teschen, de Jessica Biel, prometida em casamento a Leopold, o príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro vivido por Rufus Sewell.
Edward Norton encarna o sentimento romântico do protagonista com tanta convicção que é quase impossível não se render ao expediente diabólico que adota para consumar o sonho de ter a mulher amada só para si, alegoria que fala sem rodeios ao dom de iludir e de se deixar iludir presente em cada um de nós.
Filme: O Ilusionista
Direção: Neil Burger
Ano: 2006
Gêneros: Mistério/Drama
Nota: 9/10