Um dia há de ser assim. Por uma dádiva da providência divina, artistas de ofício integrarão os grandes conselhos internacionais que discutem saídas para as questões inadiáveis. O clima e a fome, as guerras e diásporas, o trabalho e a renda, o emprego e a educação, as crianças e os velhos, a inclusão dos excluídos e outros temas importantes. Tudo isso será abraçado pela sensibilidade generosa dos artistas, prontos a oferecer soluções incríveis a cada assunto.
Entre economistas e geógrafos, químicos e físicos e cientistas sociais, médicos e arquitetos, urbanistas e outros pensadores, serão ouvidas com atenção e respeito as ideias dos pintores e coreógrafos, dramaturgos e escultores, fotógrafos e escritores, atores, compositores e músicos, todos eles leais representantes dos que têm a beleza como ferramenta, matéria-prima e produto final.
Aos poucos, o olhar sensível e potente dos artistas ajudará a mudar o rumo das coisas deste mundo para melhor. Um dia há de ser assim.
Pois foi esse o delírio de grandeza que me arrebatou durante a escuta comovida das nove canções do disco “Anagrama”, da compositora, cantora e atriz recifense Isadora Melo.
“Anagrama” é o segundo disco de Isadora, lançado em 2022, em meio a uma trajetória bonita de trabalho que inclui parcerias com o Cordel do Fogo Encantado e peças com João Falcão. O álbum inteiro é, como adianta a ideia de sua faixa de abertura, “uma proposta de lucidez dentro desse estado crítico”.
Isadora Melo é um Brasil bonito e forte resgatado dos escombros de tanto ódio e tanto horror, tanto medo e tanta dor. A beleza e a inteligência de suas canções nos põem defronte a questões prementes e doces caminhos, submersos na riqueza da música brasileira nordestina dos cantadores de praça, das lavadeiras de beira de rio, da tristeza emprestada das senhoras carpideiras e da alegria infantil de quem olha o mar de manhãzinha. Dos lamentos fundos, do carnaval, do frevo, das raízes africanas e de toda cantoria furiosa da vida.
O disco inteiro de Isadora dá notícias de nossa vocação para a beleza e a concórdia. Em seu canto que guarda e revela um mundo imenso e profundo, vive uma impressão bonita de que tudo vai dar certo. E o resto é só poesia.
Nas parcerias com artistas como Juliano Holanda, Martins, Marcello Rangel, Phillipe Wolnney, Lira do Cordel do Fogo Encantado e Rafael Marques, companheiro de Isadora, “Anagrama” tece uma teia rica de projetos e esperanças envolvidos em belezas. E põe belezas nisso.
Ouvir o disco de Isadora teve em mim um efeito analgésico brutal. Feito uma acupuntura sonora, os arranjos desse álbum me espetaram em pontos essenciais e me pinçaram com as pontas dos dedos de meus buracos mais fundos. A formosura das ideias cantadas por Isadora, a produção precisa e a beleza de tudo isso junto injetaram em mim uma alegria que por aqui andava rara.
A mim só me resta recomendar emocionado esse tesouro a toda gente a quem interessar possa.
Tivessem os governos, os políticos e as grandes corporações internacionais algum senso mínimo de preservação da espécie e não de seus próprios cargos e cofres, gente linda como Isadora e seus parceiros já estariam inseridos nas grandes decisões da humanidade.
E a partir de então, nas escolas e empresas, em clubes e agremiações, nas igrejas e terreiros, nos templos de toda forma, nas sinagogas e mesquitas há de soar uma canção de amor e alegria que nos irmane de novo a todos, criaturas do mesmo céu e do mesmo sol perdidas em tanto chão. Um dia há de ser assim.