Harrison Ford traiu o movimento: novo filme de Indiana Jones é uma ofensa ao personagem, ao cinema e à humanidade

Harrison Ford traiu o movimento: novo filme de Indiana Jones é uma ofensa ao personagem, ao cinema e à humanidade

Meninas e meninos, assisti a “Indiana Jones e a Relíquia do Destino” e fiquei indignado. Não devido ao roteiro mal escrito, nem pelo plano idiota do vilão, tampouco pelos efeitos especiais de gosto duvidoso ou pela escolha infeliz do artefato arqueológico do momento. Também não foi pela personagem feminina bidimensional ou pela figura infantil desnecessária. Poderia ter sido pelo terceiro ato sem sentido, mas também não foi por isso. Nem reclamo da duração excessiva. O conjunto é tão desagradável que o acúmulo desses defeitos apenas serve para irritar. Para se indignar, exige-se algo mais, algo visceral. Requer um desrespeito ao espírito e ao legado da saga. O fato lamentável é que “Indiana Jones e a Relíquia do Destino” transformou um grande herói em um homem medíocre.

A culpa não foi de Harrison Ford. O ator se esforçou desta vez. Se o personagem que ele apresentou sem muito esforço em “Star Wars: O Despertar da Força” não é Han Solo e o indivíduo artificial que apareceu afirmando ser Ricky Deckard em “Blade Runner 2049” apenas finge ser o Caçador de Androides original, desta vez o legítimo Dr. Henry Walter Jones Júnior apareceu na tela com todo seu carisma, porém sem qualquer pompa e circunstância. O que aconteceu? Como foi possível errarem tanto? Incompetência? Má fé? Sabotagem?

Proponho um exercício de imaginação para explicar. Você sabe qual foi o destino do Rei Arthur? Segundo a tradição literária medieval, após ser ferido na cabeça em seu combate final com o bastardo Mordred, o soberano foi levado por três feiticeiras para ser tratado na ilha de Avalon. Sobreviveu? Morreu? Não sabemos. O que dizem é que ele retornará quando a Inglaterra mais precisar dele. Imagino que este momento esteja próximo.

Outro exemplo: qual foi o destino de Conan, o Bárbaro? De acordo com as crônicas hiborianas, após se tornar rei por suas próprias mãos, ele governou o próspero reino da Aquilônia por décadas. Contudo, dizia que não queria morrer em uma cama, cercado de lacaios e mulheres chorando. Em certo momento, já idoso, cansou-se de ser rei, abdicou em favor do filho e voltou à sua vida errante de aventuras. Retornou a ser pirata, ladrão ou mercenário? Vagou pelo deserto? Ninguém sabe. Possivelmente, morreu em combate, honrando o enigma do aço, como desejava.

E Indiana Jones? Segundo o quinto filme da franquia, o respeitável professor de arqueologia aposentou-se de sua cátedra universitária, recuperou-se de uma crise conjugal, provavelmente aposentou o chapéu, a jaqueta e o chicote e viveu feliz seus poucos anos restantes de vida praticando erotismo geriátrico, lendo livros escritos em línguas mortas e jogando xadrez com outros aposentados no parque perto de seu humilde apartamento. Aparentemente, James Mangold, o diretor que ousou assinar “Indiana Jones e a Relíquia do Destino” no lugar de Steven Spielberg, considera esse anticlímax patético uma conclusão satisfatória para uma vida repleta de ação e aventura. Ou seja, pareceu-lhe uma boa ideia transformar Indiana Jones em um homem comum. Motivo: ele envelheceu. Pode haver preconceito maior do que despir um homem de seu espírito em função da idade avançada?

Lembrei-me do eterno presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange. Uma vez perguntaram-lhe o motivo de não se aposentar, de manter-se sempre ativo. Sua resposta foi uma lição de vida: “Se eu me aposentar, deixarei de ser João Havelange e me tornarei um velhinho”. Exatamente. Não era necessário tornar Indiana Jones à prova de balas. Bastava ter mantido seu espírito indomável. Clint Eastwood entendeu isso em “Gran Torino”, “Os Imperdoáveis”, “Cowboys do Espaço” e “A Mula”. Stallone entendeu isso em “Os Mercenários”, “Rocky Balboa” e “Rambo: Até o Fim”. Até os Caça-Fantasmas entenderam. James Mangold, porém, foi incapaz de captar a dignidade humana inerente a essa ideia.

Parece haver um plano orquestrado para desvalorizar nossos heróis. A mesma Disney que transformou Luke Skywalker de um mestre Jedi em um velhinho que bebe leite azul, repetiu o ato com Indiana Jones. O mais inusitado é que dentro do próprio filme apresentaram a opção dele se tornar um personagem da História, tema que sempre o motivou. Seria um destino inverossímil, mas seria um destino digno. Optaram pela pior solução. “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal”, dirigido pelo próprio Spielberg, também foi ruim, mas não foi desrespeitoso em sua premissa. Salvam-se duas ou três cenas. Aqui, nada se salva, considerando que a trilha de John Williams foi reciclada. Conseguiram humilhar até mesmo seu fiel companheiro Sallah, reduzido de um respeitado escavador no Egito para um proletário nos Estados Unidos. Por que Sallah não voltou para casa após a guerra? Prefere dirigir táxis a escavar sítios arqueológicos? Duvido que saibam explicar. Assim como não saberão explicar o desperdício do personagem potencialmente interessante de Antonio Banderas. Ou mesmo o que gerou a necessidade do tapa-olho que vemos na série “As Aventuras de Indiana Jones”.

Por fim, a série “The Big Bang Theory” criou a lenda urbana de que a presença de Indiana Jones seria irrelevante para o desenvolvimento do enredo de “Os Caçadores da Arca Perdida”, o genial primeiro filme da saga. Aliás, discordo dessa teoria (explicarei em outro momento). Mas essa premissa parece valer para “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”. Certamente, tudo aconteceria exatamente da mesma forma se Indy não tivesse se envolvido. O péssimo roteiro não justifica os motivos pelos quais o vilão não fez nada antes, esperando por décadas para colocar seu plano maléfico em andamento. Não importa. Pedir coerência é pedir demais.

Teria sido melhor se tivessem se mantido em silêncio. Há certas coisas que não precisamos saber. Isso destrói a magia. Rei Artur e Conan mantiveram sua grandeza. Até o quase centenário Indiana Jones da TV conseguiu. Na tela grande, justamente seu habitat, Indiana Jones, que não foi derrotado por nazistas, comunistas, adoradores de Kali ou alienígenas interdimensionais, caiu diante do desrespeito de uma nova geração de profissionais do cinema incapaz de atender às expectativas de uma saga imortal. E pensar que o final de “Indiana Jones e a Última Cruzada” era perfeito!


Saga Indiana Jones

Diretor: Steven Spielberg e um estagiário aí
Gênero: aventura
Impacto cultural da saga: 10/10

Notas para os filmes:

Os Caçadores da Arca Perdida — 10/10

Indiana Jones e o Templo da Perdição — 9/10

Indiana Jones e a Última Cruzada — 9/10

Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal — 4,5 /10

Indiana Jones e a Relíquia do Destino — 4/10

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.