Meninas e meninos, eu li “O Feijão e o Sonho”, de Orígenes Lessa, e cantei parabéns pelos cinquenta anos que a Série Vaga-Lume completa em 2023. É inegável que, muito antes da saga Harry Potter e congêneres existirem, a Série Vaga-Lume foi responsável pelos primeiros passos de muitos jovens leitores, a despeito da Primeiros Passos ser uma outra coleção. Há títulos que podem ser considerados pequenos clássicos de nossa literatura infanto-juvenil, como “O Caso da Borboleta Atíria”, de Lúcia Machado de Almeida”, que também escreveu a desigual saga de Xisto; “O Mistério do Cinco Estrelas”, de Marcos Rey; “A Turma da Rua Quinze”, de Marçal Aquino; “Zezinho, o Dono da Porquinha Preta”, de Jair Vitória; “Os Meninos Sem Pátria”, de Luiz Puntel. São legião.
Fui um desses neófitos da Série Vaga-Lume. Coleciono algumas boas memórias dessa educação sentimental. Por exemplo, meu recorde de tempo de leitura ainda é com “A Ilha Perdida”, de Maria José Dupré, devorado em aproximadamente uma hora, em um exercício involuntário de leitura dinâmica. Depois que li “A Serra dos Dois Meninos”, de Aristides Fraga Lima, fiquei tão encantado com a história que evitei ler outras coisas por um tempo, porque temia esquecer os detalhes dessa aventura. Fiquei decepcionado com “O Rapto do Garoto de Ouro”, de Marcos Rey, porque pensei que seria uma versão literária do filme “O Rapto do Menino Dourado”, estrelado por Eddie Murphy. Estranhamente, ainda não li obras importantes da série, como “Sozinha no Mundo”, outro de Marcos Rey, e “Os Barcos de Papel”, de José Maviael Monteiro.
Meu livro preferido da coleção sempre foi “O Feijão e o Sonho”, de Orígenes Lessa. Lembro-me que, no auge de meus onze ou doze anos, achei o estilo e a narrativa do livro muito diferentes do restante da coleção. Pareceu-me adulto e sofisticado. Nada de raptos mirabolantes, malas cheias de dólares, aventuras espaciais ou insetos falantes. Gostei disso. Precisou de duas décadas para que eu descobrisse que a obra é de 1938, tendo sido incorporada posteriormente na série. Explicado, embora houvesse outros exemplos de literatura madura na coleção, como “Éramos Seis”, de Maria José Dupré.
O enredo de “O Feijão e o Sonho” é conhecido. Campos Lara é um professor de província que sonho em ser poeta. Sua esposa Maria Rosa, sempre exausta e irritada pelos pesados afazeres domésticos, tenta trazer Campos Lara para realidade de contas, obrigações e filhos para criar. Obviamente, ela é o “feijão” e ele é o “sonho”, Campos Lara é a “cigarra” e Maria Rosa é a “formiga”. Mas não se trata de uma perspectiva simplista do tipo “arte não enche barriga” e ponto final. Há camadas. O fato de um personagem ser chamado de “campo” e outro de “rosa” não é por acaso. Teria Campos Lara conquistado Maria Rosa com um poema? Essa sempre me pareceu uma boa pergunta.
O crítico Rodrigo Gurgel, no livro “Percevejos, Ideólogos e Alguns Escritores” escreveu que “ao contrário do que o leitor apressado pode concluir, é Maria Rosa a personagem contagiante da história, exatamente por ser complexa, pronta a expressar seus paradoxos, dividida entre o amor pelo marido e o repúdio veemente da sua completa inabilidade para viver e da literatura, que considera inútil. Coube ao senso comum, entretanto, romantizar as irresponsabilidades de Campos Lara, transformando-o em herói”. Concordo totalmente com Gurgel. Maria Rosa não é apenas uma megera que poda o sonho do marido. Maria Rosa é a lucidez necessária que pode separar um artista profissional de um sonhador amador. Embora seja talentoso e relativamente culto, Campos Lara é preguiçoso, indolente, infantil e superficial, “incapaz de conhecer a si próprio”, como apontou Gurgel. Sem o pragmatismo de Maria Clara, provavelmente, terminaria bêbado na sarjeta.
Eventualmente, Campos Lara consegue construir uma carreira como escritor. Romancista, para ser mais exato, pelo simples fato de que ficção vende mais do que poesia. Sinto a sombra de Maria Rosa nesta opção de criação estética. Esse tipo de complexidade só se encontra na grande literatura. É digno de aplausos que tenha sido disponibilizada para tantas gerações de jovens ao longo das décadas.
Com “O Feijão e o Sonho”, a Série Vaga-Lume alcançou seu brilho máximo.
Livro: O Feijão e o Sonho
Autor: Orígenes Lessa
Páginas: 184
Editora: Ática
Nota: 8/10