Obras menores, sem ambições de grande arte, são melhores para identificar questões estruturais das narrativas de ficção. Tudo fica mais exposto e claro. Por sua vez, a literatura complexa esconde do leitor os pontos fundamentais. É preciso escavar, ter o olhar atento, para desvendar os sentidos relevantes nos romances de um Dostoiévski ou de um Machado de Assis. O mesmo raciocínio, que vem de Antonio Candido, vale para a interpretação de outras manifestações, como o cinema.
No Brasil atual, a telenovela “Vai na Fé” (da TV Globo) é uma dessas obras menores e reveladoras. Tornou-se comum dizer que as ficções da televisão brasileira são espelhos da realidade e também modelos para comportamento das pessoas. O que chama atenção na história criada agora por Rosane Svartman, são os tipos sociais presentes na tela. Sobressai principalmente a temática cristã, evangélica que permeia a vida dos personagens numa clássica história de amor romântico.
O centro da trama é a relação amorosa de Solange (interpretada por Sheron Menezzes) e Benjamin (Samuel de Assis), na cidade do Rio de Janeiro. Eles namoram na adolescência, tomam caminhos diferentes e se reencontram 20 anos depois. Ela é a mãe negra de duas filhas que, já viúva, vai discutir seus dilemas amorosos com o pastor da igreja do bairro. É vendedora de quentinhas, sendo a empreendedora popular de hoje. Não tem carteira assinada e sonha em ser cantora (arriscando algumas músicas nos cultos).
Moradora do bairro carioca de Piedade, Solange cumprimenta os amigos e vizinhos com a saudação “graça e bem”. O universo dela está repleto de referências evangélicas no sentido positivo do termo e menos conservador. Isso vale para as relações familiares e as econômicas (a venda de quentinhas junto com a mãe e a melhor amiga). É o contrário do que se vê no filme “Divino Amor” (2019), de Gabriel Mascaro, que encena a distopia de um Brasil cristão e regido por pastores malignos.
Benjamin é o advogado negro bem-sucedido que subiu na escala social graças aos estudos. Antes de rever Solange, ele era casado com Lumiar (Caroline Dieckmann), sócia no escritório de advocacia e filha de pais oriundos da cultura hippie dos anos 1960. Trata-se de um casal de classe alta, sem filhos e bem conectado com a modernidade. Ela leciona numa faculdade de Direito com alunos beneficiados pelas cotas raciais e pelo Prouni. Estamos diante do país esclarecido e que se acha integrado ao mundo.
Homem abusador
O vilão da novela é Theo (Emílio Dantas), amigo de infância de Benjamin. Ele tem uma empresa de importação, evidentemente especializada em bugigangas do comércio popular das grandes cidades. Abusa de todas as mulheres que o cercam. Um passo a mais e ele está no meio de contrabandistas — e o que mais se possa imaginar de ilegal. O entra-e-sai do submundo também faz parte da vida de Hugo (MC Cabelinho), o jovem que nem estuda, nem trabalha, mas pode estar em algum trampo ilegal.
O conflito central é a definição de quem é pai verdadeiro de Jennifer (Bella Campos), filha de Solange. Pode ser o bom Benjamin ou o mau Theo. Ela estuda na faculdade dos cotistas, o que sinaliza para uma nova classe média negra e esclarecida. A subida na vida não será pelo esporte ou pela beleza física, mas pelos estudos. Ela vive também um dilema amoroso entre a paixão por Hugo (que entra e sai do crime) e o caminho seguro do namoro com Edu, o jovem missionário da igreja. É o Brasil que trafega entre os mundos legal, ilegal e ilícito. Coisas ruins podem estar logo ali na esquina. Ou não.
No pano de fundo, aparece ainda o personagem Lui Lorenzo (José Loreto), cantor de funk suave, palatável ao público gospel, e que sonha namorar Solange. Nada do apocalipse do rap dos Racionais ou do Planet Hemp. A mãe dele, Wilma (Renata Sorrah), é uma atriz veterana que representa a cultura elitizada, mas que vive mesmo do dinheiro do filho funkeiro. O entorno de Lui é uma galeria de trabalhadores da indústria criativa, informal e precária. São os agregados do artista célebre. Ganha-se dinheiro matando um leão por dia, ou seja, é o empreendedorismo popular do Brasil em estado nu e cru.
A novidade de “Vai na Fé” é a fotografia positiva de um Brasil cristão. Quase uma utopia da vida popular (a fé no futuro) para superar a distopia dos últimos anos. Personagens negros são protagonistas, saindo dos estereótipos dos empregados domésticos ou dos criminosos. Se há conflito, o pastor faz a negociação. Também é um retrato do trabalho informal no qual uma pessoa não sabe se está fazendo algo legal ou ilegal. Um país que está ficando mais velho de idade e com menos jovens. Ao mesmo tempo, uma parte do país que escolheu o caminho de reinvenção por meio da fé.